HISTÓRIA E CULTURA

As trincheiras na Primeira Guerra Mundial - Parte 1

trinchei2 - soldado asutraliano topoO início da Primeira Guerra Mundial foi marcado, em agosto de 1914, pelo ataque alemão através da Bélgica em direção à França. Este avanço foi repelido no início de setembro de 1914, nos arredores de Paris, por tropas francesas e britânicas, na Primeira Batalha do Marne. Os aliados empurraram as forças alemãs para trás cerca de 50 km. Os germânicos seguiram então para o vale do Aisne, onde prepararam suas posições defensivas.As forças aliadas não foram capazes de romper a linha de defesa alemã e criou-se um impasse. Nenhum dos lados estava disposto a ceder terreno e ambos começaram a desenvolver sistemas fortificados de trincheiras. Isso significou o fim da guerra móvel no oeste da Europa. Em novembro de 1914 existiam desde o litoral do Canal da Mancha até a fronteira suíça um grande ...

complexo de linhas de trincheiras, de onde centenas de milhares de militares tentavam, ao mesmo tempo, se proteger e atacar. A utilização de trincheiras não era nenhuma novidade em guerras. A novidade era a dimensão destes sistemas de defesa, o prolongado tempo de ocupação, a quantidade de homens que as utilizavam e o uso maciço de metralhadoras e artilharia.

Os avanços na tecnologia militar levaram a uma rápida evolução no poder de fogo das armas que não foi acompanhada por avanços similares em estratégias, resultando numa capacidade defensiva maior que a ofensiva, tornando a guerra extremamente mortífera e desgastante. O arame farpado era um constante obstáculo para os avanços da infantaria; a artilharia, muito mais letal que no século XIX, armada com as inovadoras metralhadoras e canhões de grossos calibres e longas distâncias, causava mortes numa velocidade e quantidade sem precedentes. Os alemães começaram a usar gases tóxicos em 1915 e logo depois ambos os lados usavam da mesma estratégia. Nenhum dos lados ganhou a guerra pelo uso de armas químicas, mas estas fizeram a vida nas trincheiras ainda mais tensa e desagradável, tornando-se um dos mais temidos e lembrados horrores de guerra.

A guerra de trincheiras está associada ao extermínio e sobrevivência em condições terríveis, combinada com a visão de que homens corajosos se lançando a uma morte quase certa por causa de comandantes incompetentes para se adaptar às novas condições de combate, insistindo em ataques frontais em grande escala às trincheiras inimigas. Para se ter ideia da capacidade letal das novas armas usadas na guerra, somente no primeiro dia do da Batalha de Somme, em 1 de julho de 1916, os britânicos tiveram 19.240 mortos e 38.230 feridos. Na Batalha de Verdun, de 21 de fevereiro a 18 de dezembro de 1916, ocorreram aproximadamente 714.000 baixas (377.000 franceses, dos quais 162.308 mortos ou desaparecidos; e 337.000 alemães, dos quais 100.000 mortos ou desaparecidos). Muitos comandantes insistiam no antigo raciocínio de que a coragem individual dos homens superaria o poder das armas no combate corpo a corpo. A partir de 1916, diante das imensas baixas, a opinião pública referia-se aos britânicos e franceses como “leões liderados por burros”.

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    Trincheira britânica - Batalha de Somme ( França ) - 1916

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    Trincheira alemã - Batalha de Verdun ( França ) - 1916

 

A Terra de Ninguém

 

O front ocidental se estendia por 654 Km, cruzando o território belga a partir do litoral do Canal da Mancha, contornando Ypres, adentrando os 145 Km do setor britânico, seguindo ao sul em direção à França. Depois do rio Ancre os franceses assumiam a defesa do front que se estendia para o leste, contornado Verdun até a fronteira suíça. Espalhados por estes 654 Km, estima-se que aproximadamente 40.000 Km de trincheiras foram construídos por ambos os lados, num intrincado sistema de defesa que, se colocado em linha reta, seria grande o suficiente para dar uma volta em torno do planeta.

O termo “Terra de Ninguém” foi criado pelos ingleses no início da guerra para designar o terreno entre os sistemas de trincheiras construídos pelos alemães e aliados. Essa faixa de terra media de 45 metros a 1,6 Km, dependendo da região, e era um local não conquistado por nenhum dos lados, não oferecendo abrigo e sendo coberto por fogo de metralhadoras e canhões da artilharia, com arame farpado e às vezes minas em áreas próximas às trincheiras, depois reforçadas com lança-chamas. A terra era de ninguém porque ninguém a controlava ou lá permanecia, tornando-se um local devastado que aos poucos foi se enchendo de cadáveres insepultos. A Terra de Ninguém permaneceu um obstáculo insuperável desde o início da guerra, em setembro de 1914, até a Batalha de Cambrai, em 20 de novembro de 1917, quando tanques de guerra ingleses foram capazes de atravessar a área e avançar diretamente sobre as trincheiras alemãs, mostrando que novas estratégias e armas poderiam, depois de três anos, acabar com as mortes maciças nos ataques.

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     Linha de trincheiras do Front Ocidental
     ( Clique no mapa para ampliá-lo )
    Trincheiras ocupadas por tropas da:                
    Alemanha ( Amarelo )
    França ( Roxo )
    Inglaterra ( Vermelho )
    Bélgica ( Laranja )
    Obs.: A linha verde tracejada demarca a Terra de Ninguém.

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        Tropa francesa avançando na Terra de Ninguém - Batalha de Verdun ( França ) - 1916

 

Um labirinto de trincheiras

 

As trincheiras eram labirintos de muros com sacos de areia e madeira na superfície e túneis que formavam pequenas cidades no subsolo. Havia três linhas de trincheiras: a primeira era a Trincheira de Fogo, de onde fossos menores conhecidos como “galerias de sapa” avançavam para a Terra de Ninguém levando aos postos de observação avançados, posições de lançamento de granadas, postos de metralhadoras e de lança-chamas. À frente da trincheira erguia-se o arame farpado, que evoluiu de alguns fios para uma rede de contínuos rolos de crescente espessura, algumas vezes eletrificados. Dentro desta primeira linha de trincheiras havia metralhadoras e lança-chamas que, juntamente com os fuzis e granadas de mão, dizimavam os soldados inimigos que ficavam retidos no arame farpado.

Cerca de 20 a 90 metros atrás, ligada por trincheiras de comunicação e túneis, ficava a segunda linha de trincheiras, a Trincheira de Apoio, onde as tropas se acumulavam – fora do alcance da artilharia inimiga – para realizar um ataque ou um contra-ataque no caso da primeira linha de trincheiras ser invadida pelo inimigo. À frente desta trincheira também havia arame farpado e postos para metralhadoras e lança-chamas. Cerca de 100 metros atrás, também ligada por trincheiras de comunicação e galerias, ficava a terceira linha de trincheiras, a Trincheira de Reserva, onde havia os alojamentos da maior parte das tropas.

Entre as linhas de trincheiras havia postos de observação, sanitários, postos de atendimento médico, cozinhas, plataformas abertas para morteiros e os postos de comando das companhias e batalhões. As trincheiras tinham entre 2 e 2,5 metros de profundidade, com média de 60 a 90 centímetros de largura (chegando a 2 metros de largura em alguns locais), protegidas de tiros e estilhaços em sua parte superior por sacos com a areia da escavação, que também eram usados para reforçar as paredes em algumas regiões. Para o lado do inimigo havia plataformas de areia ou madeira, com cerca de 60 cm de altura, nas quais subiam para atirar. No piso cortavam-se sulcos para drenagem, cobertos com esteiras de ripas de madeira.

Um soldado francês descreveu o ambiente como “um mundo fétido de terra pegajosa e gotejante, encoberto por uma faixa de céu ameaçador”. Outro combatente inglês descreveu as trincheiras como “um mundo de toupeiras, que se entocavam cada vez mais fundo para fugir dos poderosos explosivos: uma cidade subterrânea com avenidas, alamedas, ruas, becos sem saída, vielas e cruzamentos, tudo com nome, rotulado e ligado por telégrafo e telefone”. Um segundo-tenente irlandês explicou à família que “qualquer avanço ou recuo forçava o abandono de velhas trincheiras, mas um novo front significava cavar novas ou, com frequência, reivindicar antigas. Muitos sistemas mudaram de mãos diversas vezes”.

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     Reconhecimento aéreo das trincheiras em Loos-Hulluch
     ( Julho de 1917 )
    As trincheiras alemãs formam o complexo maior à direita.
    As trincheiras inglesas formam o complexo menor à esquerda.
    A Terra de Ninguém está entre as trincheiras adversárias.
    É possível perceber inúmeras crateras feitas pela artilharia de ambos os lados.

Para que as tropas inimigas não conseguissem conquistar uma trincheira em um único ataque, estas não eram feitas em linha reta. Trincheiras auxiliares e perpendiculares eram construídas para permitir melhor defesa, pois possibilitavam que tropas ao lado segurassem mais facilmente os atacantes, permitindo a chegada de reforços vindos da retaguarda para a retomada.  Outro motivo para que as trincheiras não fossem feitas em linha reta é que, no caso de um tiro de artilharia acertar dentro da trincheira, os estilhaços não se propagariam em linha reta para os lados causando muitas baixas. As paredes em ângulo reto seguravam a maior parte do impacto da explosão e protegiam os militares que estavam ao lado.

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        Trincheiras em zigue-zague aumentavam a proteção da tropa e a defesa do terreno.

Das pequenas e improvisadas trincheiras dos primeiros meses, repletas de homens lutando ombro a ombro, levando a grandes baixas por fogo de artilharia, criou-se um sistema de profundas trincheiras interligadas e com setores especializados, que resistiam aos bombardeios de artilharia e ataques em massa de infantaria. Os ingleses construíram trincheiras mais precárias, entre 3 e 6 metros de profundidade e sem maiores confortos, baseando-se na ideia de que não permaneceriam lá por muito tempo, seguindo para conquista de território inimigo.

Os alemães construíram trincheiras mais elaboradas, visando uma possível ocupação prolongada, reforçadas com concreto e trilhos ferroviários, que tinham até janelas com venezianas, aparelhos de música e capachos para os pés. Alguns abrigos chegavam a 9 metros de profundidade, com amplos alojamentos para até 16 beliches, campainhas nas portas, tanques de água com torneiras, armários e espelhos.

Na medida em que o tempo passou e ficou claro que a permanência no local seria prolongada, ambos os lados melhoraram sua trincheiras. As paredes, o piso e o teto dos túneis e trincheiras foram revestidos com madeira, usada também nos degraus das escadas e mobílias como mesas, cadeiras, armários e bancadas. Portas e janelas, recolhidas das vilas próximas destruídas, foram usadas em alguns alojamentos das trincheiras para diminuir o frio em seu interior. Dispunham também de fios para comunicação por telefone e energia elétrica.

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    Trincheira francesa protegida por arame farpado.
    
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    Alemães terminando rede de arame farpado para defesa de trincheira

 

A coragem e inutilidade dos ataques às trincheiras

 

 O soldado Fellowes, membro dos fuzileiros da Nortúmbria (Parte da Grã-Bretanha) descreveu uma tentativa de alçar o topo de uma posição defensiva alemã, na Batalha de Loos (França, setembro de 1915):

“Marchamos durante cinco noites para chegar a Loos. O comandante de nossa companhia, capitão Powell, nos comunicou que estava sendo travada uma árdua batalha, com diversas divisões em ação... Nossa missão seria substituir parte dessas tropas. Em minha memória ainda posso ouvir gritos e aplausos. A caminho da linha de frente, o ajudante me parou e disse: ‘O oficial comandante tem uma mensagem para você entregar.’ Até hoje me lembro do conteúdo daquela mensagem. Escrita em um velho bloco de sinalização, sem data nem assinatura, dizia:’O oficial comandante deseja que o ataque seja realizado com baionetas, à verdadeira moda da Nortúmbria.’ Foi a primeira notícia que tive que entraríamos em ação. Quando cheguei às trincheiras, todos estavam a postos, com baionetas armadas. Enquanto eu contornava pela retaguarda, os soldados pularam a borda das trincheiras e começaram a correr o mais rápido que o equipamento lhes permitia. Que alvoroço! Procurei o capitão Powell para lhe entregar a mensagem, mas percebi que ele se juntara aos outros e então o segui.

Os primeiros homens já se encontravam a quase 100 metros da cerca de arame farpado dos alemães, sem que um único tiro fosse disparado. De repente, parecia que a terra se transformara em um verdadeiro inferno. Alguns homens começaram a cambalear e cair, as metralhadoras desferiam tiros bem diante de nós... Um rapaz tombou na minha frente, tropecei e caí sobre ele. Até hoje não me envergonho – permaneci exatamente onde estava.

Aquela cena vai me acompanhar até a minha morte, toda a colina repleta de homens prostrados no chão. Tal qual começaram, os alemães de repente pararam de atirar. Os homens se levantaram, alguns cambaleando e rastejando como podiam para retroceder. Os alemães não atiraram... estavam tão cheios de remorso e culpa diante dos corpos em Loss que se recusavam a fazer qualquer outro disparo...

Quando retornei à trincheira, me vi no mesmo lugar de onde partira. Um dos soldados me passou o cantil. Ficamos ali, horrorizados, ouvindo gemidos dos homens no campo, alguns deles aos gritos. Um horror! Receio que muitos morreram antes mesmo do anoitecer. Naquele instante, a mensagem para o capitão Powell ainda estava comigo. Só o encontrei mais tarde... Entreguei-lhe a mensagem. Ele leu e disse: ‘Agora, meu filho, não importa mais.’ Pude perceber lágrimas no seu rosto.”

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    Um dos muitos ataques dos alemães ao Monte do Morto - Batalha de Verdun ( França ) - 21 de fevereiro a 18 de dezembro de 1916

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    Restos mortais de alemães no Monte do Morto
    Os alemães atacaram sem sucesso, onda após onda, entre fevereiro e dezembro de 1916, fortes posições defensivas francesas a noroeste da cidade de Verdun, num local que os franceses chamaram de Monte do Morto.
    ( Essa foto foi feita em 1918, durante o avanço das tropas aliadas )

 

O cotidiano nas trincheiras

 

 Na rotina das trincheiras, os oficiais e soldados tinham de acordar antes do alvorecer – momento preferido para deflagrar ataques – e verificar as trincheiras inimigas através de periscópios. Tal observação e prontidão eram repetidas ao anoitecer. Nestes momentos procuravam-se mudanças em relação ao dia anterior que pudessem indicar um possível ataque ou fortificação.

Depois da verificação matinal, a maioria dos homens deixava os postos nas trincheiras da frente para tomar o café da manhã na retaguarda. Quando estavam com sorte, recebiam duas colheres de rum, servidas cuidadosamente, mas na maioria das vezes a comida consistia em carne e vegetais enlatados e biscoitos, sendo rara a comida fresca para os sargentos e soldados. Quando um conjunto de trincheiras já estava construído e reforçado, passavam o dia limpando as armas, consertando os estragos nas trincheiras ou escrevendo para casa. Os oficiais inspecionavam, encorajavam e comunicavam as condições ao comando através de mensageiros, que utilizavam trincheiras de comunicação para o trajeto.

O soldado inglês Kenneth Garry, que morreu depois de dois anos nas trincheiras, descreveu um típico dia de dezembro de 1915: sua primeira tarefa, às 7 da manhã, era percorrer as trincheiras de comunicação para recolher água em latas de gasolina de 9 litros, através de uma bomba num poço de uma fazenda abandonada ou num vagão de água. Na volta, um companheiro de abrigo aquecia em um fogareiro a água para o chá, enquanto na cozinha do regimento, os cozinheiros se esforçavam para acender a lenha úmida e fritar bacon para o café da manhã. Garry então era convocado pelo cabo de seu grupo para trabalhar na faxina e nos reparos das trincheiras. Munido de galochas e capa, dirigia-se para um depósito de sacos de areia, pás, picaretas, arame farpado e esteiras de ripas, onde recebia uma pá para trabalhar escorando alguma mureta desmoronada pelas chuvas ou bombardeios.

A parte de cima da trincheira, exposta ao inimigo, era consertada à noite. Depois montava um turno de guarda com seu rifle em uma das posições de tiro e improvisava um periscópio fixando um espelho em sua baioneta num ângulo de 45º. Os periscópios para vigia existiam em número reduzido – usados normalmente pelos oficiais e às vezes por sargentos – e cada soldado, quando na função de vigia, improvisava seu periscópio para levantá-lo pouco acima do parapeito e ver as trincheiras do inimigo que estavam à sua frente. De vez em quando um tiro de boa pontaria quebrava o espelho usado para o reconhecimento, enchendo a trincheira com estilhaços de vidro. O revezamento ocorria depois de três horas, então se tomava café e retornava para o abrigo.

Garry escreveu que “Não havia muito para ver! Só terra e sacos de areia, com um pedaço de madeira aqui e acolá. No conjunto, montes de terra revolvida pelos soldados ao cavarem as trincheiras. Cansado de estar sentado, podia-se espreitar entre os sacos de areia e, se o tédio era demasiado, disparava-se algum tiro. Entretanto, um homem podia passar um ano nas trincheiras sem dar um tiro sequer”.

PARTE 2