HISTÓRIA E CULTURA

A Morte de João PauloI-Parte1

João Paulo I papa sorrisoJoão Paulo IAlbino Luciani(Veneza, Itália, 17/10/1912 - Vaticano, 28/09/1978) Albino Luciani, o Papa Sorriso, nasceu em Forno de Canale, em Veneza, na Itália, no dia 17 de outubro de 1912. Era filho de Giovanni Luciani, um modesto operário de uma fábrica de vidros e de Bortola Tancon, uma boa católica como era conhecida. Como temiam pela sua vida, ele foi batizado no mesmo dia, pela própria parteira, em sua casa. Seu pai era um militante socialista e sua mãe uma simples doméstica. Foi Dona Bortola que com muito esforço conseguiu encaminhar os primeiros passos escolares do filho. Em outubro de 1928 Albino entrou no seminário gregoriano em Belluno e tornou-se ...

sub-diácono em 1934. Foi ordenado para o sacerdócio, na Igreja de São Pedro de Belluno em 7 de julho do ano seguinte, assumindo dois dias depois a paróquia de Canale d 'Agordo. Porém, não ficou muito tempo ocupando esta posição, logo em 18 de dezembro foi chamado para ser instrutor de religião no Instituto Técnico para Mineiros. Falam os comentaristas que sua popularidade começou aí. Dono de um sorriso ímpar, ele falava as coisas mais sérias e contundente sempre com um sorriso amoroso nos lábios. Característica que o acompanhou por toda a vida e que fazia com que suas palavras inspirassem e animassem todas as pessoas que dele se aproximavam. Em 1937, foi convidado para ser vice-reitor do Seminário gregoriano em Belluno, cargo que ocupou até 1947. Na data de 27 de fevereiro de 1947 graduou-se, pela Universidade gregoriana em Roma, como doutor em Teologia Sagrada, defendendo a tese: "A origem da alma humana de acordo com o Antonio Rosmini".

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A partir dai sua vida tomou rumos jamais pensados pelo pequeno menino das ruas de Veneza. Ele que se preocupava com a alma simples do povo, que se preocupava com a salvação de seus irmãos em humanidade se viu diante sérias responsabilidades, de árduas tarefas... Nunca perdeu a pureza de sua alma, a convicção de sua fé e a visão de seus ideais mais sagrados.

Nos anos seguintes trabalhou arduamente a serviço de sua igreja: Foi nomeado secretário da Diocese Synod, nomeado Pro Vicar-General da diocese de Belluno, nomeado Diretor de Catechetics Office da Diocese, Publicou o livro “Catechetica in briciole” e a sua tese doutoral.

No dia 6 de fevereiro de1954 foi indicado como Vigário General da Diocese de Belluno.

Tornou-se Bispo de Vittorio Veneto, em 15 de dezembro de 1958, pelas mãos do saudoso Papa João XXIII.

De 1959 a 1965 assumiu uma puramente função pastoral, procurando manter-se afastado da política intestina do Vaticano.

Porém, no dia 15 de dezembro de 1969, o Papa Paulo VI, o chamou para assumir o posto de Patriarca de Veneza. Entre 12-17 de junho 1972, foi eleito Vice-presidente da Conferência de Bispos italianos, posição que ocupou até 2 de junho de 1975.

No dia 5 de março de 1973 tornou-se Cardeal da Igreja católica romana.

De 27 de setembro a 26 de outubro do mesmo ano participou da III Assembléia Geral Ordinária em Roma do Sínodo de Bispos relativo a "Evangelização no Mundo Moderno".

Em 1975, em missão pastoral, foi até a Alemanha numa Visita Pastoral e ao Brasil, onde ele recebeu o título "honoris causa" da Universidade de S. Maria do Rio Grande do Sul.

 

 

Entre os anos de 1976 e 1977 fez inúmeras viagens a pedido do Papa Paulo VI e publicou o livro “Illustrissimi”

Apoiou abertamente os democratas cristãos contra os comunistas, porém nunca deixou que nos debates públicos suas características de temperamento - a serenidade e a humildade, fossem alteradas. Sempre procurou resolver todo e qualquer problema através do diálogo, revelando-se uma pessoa conciliadora.

Sua atividade eclesiástica distinguiu-o como “Pastor de Almas”, nunca teve cargo na Cúria Vaticana e jamais desempenhou serviços diplomáticos, não foi Núncio Apostólico e nem trabalhou em Roma. Sua atividade sempre foi pastoral na verdadeira acepção da palavra.

Mas as coisas começaram a se precipitar em agosto de 1978, quando morreu o Papa Paulo VI.

Com pesar recebeu a notícia do falecimento. Como de hábito, sem atropelos, foi para Roma no dia 10 de agosto e no dia 26, para sua surpresa, durante o segundo dia do conclave que buascava eleger o novo papa, foi eleito pontífice Supremo Eleito da Igreja Católica Romana, escolhendo para si o nome João Paulo I.

Foi o primeiro Papa da história a escolher um nome duplo.

Ficou conhecido como o Papa Sorriso.

Logo de saída, escandalizou seus pares quando recusou a cerimônia de coroação. Quis que fosse tudo reduzido a uma missa ao ar livre em plena praça. Não aceitou em sua cabeça de camponês o contacto da tríplice tiara “Símbolo dos três poderes sobre tudo e sobre todos, tiara que lhe dava o título de “pai dos príncipes e dos reis”. Dispensou o trono baldaquino e a cadeira-gestatória. Em síntese, Albino Luciano aceitou apenas o poder espiritual.

Luciani, que se descrevera com franqueza durante os seus dias em Veneza, “Sou apenas um homem pobre, acostumado às coisas pequenas e ao silêncio”, descobria-se agora obrigado a se confrontar com a, grandeza do Vaticano e as intrigas da Cúria. O filho de um pedreiro era agora o Chefe Supremo de uma religião cujo fundador fora o filho de um carpinteiro.

'Muitos dos especialistas em Vaticano, que nem sequer levaram em consideração a possibilidade da eleição de Luciani, aclamaram-no como “O Papa Desconhecido”. Ele era bastante conhecido por 99 cardeais para que lhe confiassem o futuro da Igreja, a um homem sem qualquer treinamento diplomático ou experiência curial. O número considerável de cardeais da Cúria fora rejeitado. Em suma, toda a Cúria fora rejeitada, em favor de um homem quieto e humilde, que prontamente anunciou que preferia ser chamado de Pastor ao invés de Pontífice. As aspirações de Luciani logo se tomaram claras: uma revolução total. Estava determinado a levar a Igreja de volta a suas origens, de volta à simplicidade, honestidade, ideais e aspirações de Jesus Cristo. Outros antes dele tiveram o mesmo sonho, apenas para que a realidade do mundo, conforme impingida por seus conselheiros, acabasse prevalecendo. Como poderia aquele homem pequeno e modesto realizar sequer os primórdios da transformação material e espiritual que seria necessária?' (palavras de David Yallop)

Durante seu breve pontificado, o Papa João Paulo I descobriu a existência de corrupção em enorme escala dentro do Banco Vaticano (coisa que pouco tempo depois de sua morte veio a público), e começou a fazer uma série de mudanças, tanto na estrutura de poder do Vaticano quanto na política da Igreja. Algumas destas mudanças eram tão profundas e de tão extrema importância que o termo apropriado para elas seria ‘revolucionárias’. Segundo diz George Andrews "ele iria inaugurar sua reforma da Igreja pela revelação ao mundo da verdade sobre a mensagem de Fátima" (seria a prova da existência de extra-terrestres entre nós?).

Porém, não teve tempo, seu pontificado foi curto, no dia 28 de setembro ele morreu (nos informam que de um ataque cardíaco) durante o sono. O interessante é que os medicamentos que estavam à sua cabeceira desapareceram, a Freira que o acompanhava foi obrigada ao voto de silêncio e ele foi embalsamado às pressas apenas 12 horas após a sua morte.

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Quem matou o Papa João Paulo I?

João Paulo I

 

Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:

Veículo: Estado do Paraná
Caderno ou Suplemento: Almanaque
Coluna ou Seção: Leitura
Página: 16
Data: 25/11/1984

Desde que David Yallop anunciou o seu livro "In God's Name" (Project X) o mundo alvoroçou-se: uma investigação em torno do assassinato do Para João Paulo era uma bomba de muitas toneladas de megatons. O livro foi editado quase simultaneamente em dezenas de países e está há meses entre os mais vendidos. No Brasil, em tradução de Pinheiro de Lemos, num volume de 370 páginas, foi lançado pela Editora Record.

Morris West, escritor australiano, autor de dois best-sellers cuja ação se passa no Vaticano - "O Advogado do Diabo" e "As Sandálias do Pescador", escreveu um esclarecedor artigo sobre o livro - e seus personagens. Um texto que O ESTADO DO PARANÁ divulga nesta edição.

Na página 247 de seu livro "Em Nome de Deus", David Yallop faz uma declaração incisiva e irrestrita da sua alegação: "Albino Luciani, Papa João Paulo I, foi morto entre 21:30 de 28 de setembro de 1978 e 4:30 do dia 29."

E em seguida revela os nomes de seis suspeitos...

Cody, Marcinkus, Villot, Calvi, Gelli, Sindona. Pelo menos um desses homens tomou uma decisão que foi executada durante o final da noite de 28 de setembro ou na madrugada do dia 29. Essa decisão importava em aplicar a Solução Italiana. O Papa devia morrer.

Os seis homens apontados como possíveis instigadores do pretenso crime, ou conspiradores de sua execução, formam um estranho conjunto.

Cody, já morto, era o Cardeal Arcebispo de Chicago.

Marcinkus é um arcebispo cujo nome tem sido manchete constante na imprensa mundial, ligado a escândalos financeiros no Vaticano. Continua bem vivo e residindo na Cidade do Vaticano.

Villot, francês, está morto. Era o Secretário de Estado e Cardeal Camerlengo - ou seja, o cardeal encarregado dos assuntos da Igreja no intervalo entre a morte de João Paulo I e a escolha de seu sucessor. Calvi, um banqueiro italiano, está morto. Foi encontrado enforcado sob uma ponte em Londres com os bolsos cheios de pedras.

Gelli, figura altamente sinistra e que tem suas atividades longamente discutidas no livro, está vivo e foragido.

Sindona, outrora chamado "o banqueiro de Deus" e "o salvador da lira", está vivo e na cadeia, nos Estados Unidos.

Dessa maneira, há três homens ainda vivos acusados por um conceituado escritor com instigadores ou conspiradores no complô visando à morte de um pontífice. Dos três, dois conhecidos criminosos. O Arcebispo Marcinkus, apesar de seus erros e deslizes em assuntos financeiros, continua a ocupar um alto cargo na corte papal. É originariamente cidadão norte-americano, e poderá, se tiver permissão dos seus superiores, mover uma ação por crime de calúnia ou impedir por meios judiciais a publicação e distribuição do livro... Até o momento ele não tomou tal providência.

A pergunta que todos os leitores do livro farão e: "O autor faz uma denúncia de crime de morte contra alguma pessoa ou pessoas citadas?"

Ele certamente reuniu e tornou inteligível uma vasta quantidade de excelentes provas das atividades financeiras corruptas de Sindona, Gelli e Marcinkus, e das várias instituições financeiras do Vaticano. Igualmente, juntou um grande número de declarações autênticas feitas por pessoas importantes no Vaticano. Quanto ao resto, teve de recorrer, como deverá fazer qualquer relatório romano em alguma fase do seu processo, a "fontes seguras" - gente da mais variada graduação, dentro e fora da Cidade do Vaticano, sempre disposta a prestar informações e jamais a dar seus nomes. Essa proporção do seu material é na maior parte provável ou possivelmente verdadeira.

Friso esse ponto porque desejo dar crédito total a David Yallop pelo trabalho sólido e esmerado feito na apresentação da sua tese. Ele nunca permitiu que o interesse diminuísse, embora usando às vezes as técnicas da ficção para dar mais colorido aos fatos: diálogos reconstruídos, documentação incompleta, ligações telefônicas que de forma alguma seriam reportadas por quem as tivesse feito ou recebido. Algumas vezes, também, suas interpretações de personalidades são ultra-simplificadas. Seus vilões não têm o menor traço de bondade. Por outro lado, seu retrato do Pontífice, João Paulo I, foi para mim delicado demais para ser crível.

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Contudo, não exagera ao tratar da influência corruptora do sigilo na hierarquia dos celibatários que controlam a mais antiga corte na Europa. E hábil e preciso na sua descrição da maneira de proceder da corrupção: o mexerico escondido, a intriga de alto nível e a ganância e fome de poder como pecados praticados em lugar de sexo.

Vivi durante sete anos em Roma. Conheci pessoalmente muitas das pessoas citadas na narrativa do livro. Algumas delas foram recebidas em minha casa, outras encontrei em reuniões diplomáticas ou em casa de amigos. Tenho conhecimento pessoal de algumas das trapaças financeiras descritas pelo sr. Yallop. Sei como são fabricados os boatos no Vaticano, com as declarações de porta-vozes do clero podem ser encobertas por um véu de casuísmo. Admito, com pesar, a verdade de que os altos prelados algumas vezes contam mentiras deslavadas.

Quando João Paulo I morreu, voei para Roma fim de cobrir suas exéquias para uma revista americana. Eu estava a par, e o mesmo acontecia com todos os meus colegas em Roma, de que circulavam rumores sobre uma ação criminosa naquela morte. As notícias quanto ao encontro do corpo eram conflitantes. Debatia-se diariamente o fato de não ter sido feita uma autópsia e de o corpo ter sido imediatamente embalsamado. A propósito dessas ocorrências, o relato do sr. Yallop é detalhado e, tanto quanto me lembre, preciso.

O Cardeal Villot, o Camerlengo, certamente contribuiu para a boataria pela maneira inábil como se conduziu na eventualidade. Primeiro tentou enfeitar a ocasião com uma historinha tola sobre o encontro do morto com um exemplar da "Imitação de Cristo" nas mão. Espera-se que papas e bispo morram "com um odor de santidade" e um livro próprio para referência futura.

Villot ficou de posse de alguns objetos pessoais e papéis do Papa, que não mais foram vistos. Como Camerlengo, ele tinha o direito, se não mesmo a obrigação de fazê-lo, e sendo o encarregado único de todos os assuntos durante a vacância da Sé, é difícil dizer quem poderia compeli-lo a prestar conta de seus atos.

A proibição da autópsia foi outro erro. Dado o perene clima romano de medo, suspeita e cochichos por trás das cortinas, é possível que Villot tenha pelo menos achado que fazer a autópsia seria uma medida sensata. Além disso, o Vaticano preza muito a sua soberania. A mera sugestão de que ele pudesse submeter-se a alguma lei externa ou - isso nem pensar! - à opinião pública, teria sido totalmente inaceitável. Uma vez mais a questão enfrentava uma barreira de evasivas, meias-verdades e mentiras diplomáticas. Villot revelou-se uma pessoa sem qualquer dose de humor, um Francês difícil de lidar; mas isso não o enquadra no papel de assassino.

Sindona e Gelli? Esses são grandes, detestáveis e perigosos marginais, que têm com certeza privado com diversos criminosos. Mas conquanto haja motivos em abundância para incriminá-los, não existe um revólver ainda fumegante como prova de que foram eles os assassinos de João Paulo I.

O Cardeal Cody era um tipo nem cativante, nem acreditável nem ornamental para a Igreja. Áspero, cruel e ganancioso, ele fazia política eclesiástica como um chefe político dos velhos tempos de Chicago, sem dar importância alguma a Roma. Mas crime de morte nas dependências papais? Não vejo necessidade nem prova de que o tenha cometido.

Marcinkus? Ele e eu sempre fomos antagonistas. Eu discordava da sua teologia e tinha uma inveja enorme do seu handicap no golfe. Tivemos mais de uma discussão na mesa do jantar sobre assuntos espirituais e temporais. Os debates sempre se encerraram com uma categórica declaração: "Sou homem do Papa!" E a isso eu nunca consegui dar uma resposta educada.

Menciono essa ligação porque me pedem agora que, como crítico, opine sobre um documento que acusa Marcinkus de coisas piores do que teologia reacionária. Em todas as provas levantadas com respeito às suas manobras financeiras, o Arcebispo Marcinkus evidenciou-se um homem tolo e imprudente. Certamente consorciou-se com criminosos - Sindoma foi um deles - e participou de suas negociações. Há na Itália e em outros lugares os que gostariam de levá-lo à barra dos tribunais para provar que é corrupto e criminoso. Até agora não conseguiram esse intento e, à falta de um veredicto final, assiste a Marcinkus o direito de que se presuma ser ele inocente de todas as acusações não provadas.

Yallop cita Marcinkus como um possível conspirador no crime. Suas alegações procedem? Ou pelo menos levantam a suspeita de que existe culpa? Acho que não. Se Yallop tivesse de comparecer a um tribunal como réu num processo de calúnia ou como testemunha de acusação no julgamento de um crime de morte, o advogado da parte contrária o reduziria a pedacinhos. O que não quer dizer que a prova do autor e mesmo suas presunções não sejam muito lógicas. Porém não o bastante - estão bem longe disto - para significar autoria do assassinato.

Contudo, uma acusação foi feita - acusação e uma sociedade Fechada, curial onde os preceitos do antigo Evangelho são freqüentemente esquecidos nos lances sinuosos do jogo de poder. Numa tal sociedade, é fácil demais encobrir com o manto da religião o comportamento mais sinuoso ou transviado. Mas não aceitem minha palavra como definitiva. Leiam o livro. Pesem as provas. Façam o seu próprio julgamento. Numa sociedade aberta se procede assim.

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A Morte dos Papas

(Extraído da Revista “Manchete” ano de 1989, Número 1942, Ano 38, p.30-34)

Quantos papas, no curso da história, terão morrido envenenados? A pergunta é formulada por John Cornwell, em seu livro Um Ladrão na Noite, que a Viking lançou recentemente, na Inglaterra(1989), e cujo tema é a morte, até hoje não convenientemente esclarecida, do Papa João Paulo I. E o autor cita um número muito maior de pontífices assassinados do que se poderia esperar.

João VIII, o primeiro papa a ser morto, foi envenenado em 882 por membros de sua própria corte. A poção demorou tanto a agir, que ele foi eliminado a pancada. Aproximada¬mente dez anos mais tarde, o corpo do Papa Formoso, envenenado por uma facção dissidente do seu séqüito, foi exumado pelo seu sucessor, Estevão VII, solenemente excomungado, mutilado, arrastado pelas ruas de Roma e lançado às águas do Tíbre.

No século dez, João X foi envenenado no cárcere por Marozia, filha de sua amante e mãe de João XI. Ainda no mesmo século, foram envenenados Benedito VI e João XIV.

O novo milênio não se mostrou mais benévolo para os santos padres: o primeiro a ser envenenado foi Silvestre II, conhecido como O Mago, por suas alegadas transações com o diabo, e, poucas décadas depois, Clemente II e seu sucessor Dâmaso II — embora não se exclua a hipótese de este último ter sucumbido à malária. No apagar das luzes do século 13, Celestino V foi envenenado pelo seu sucessor, Bonifácio VIII. Nos primeiros anos do século 14, Benedito XI teria morrido por ter ingerido vidro moído misturado com figos. Cerca de 150 anos se passaram, até a morte de Paulo II, depois de comer “dois grandes melões”.

Embora a causa da morte possa ter sido o pecado mortal da gula, suspeitou-se de veneno. E em 1503, Alexandre VI, o famigerado papa da família Borgia, morreu provavelmente envenenado de uma poção destinada à outra pessoa. A maneira de sua morte sugere arsênico: sua carne enegreceu; em torno de sua língua, monstruosamente aumentada, formou-se espuma, e seu corpo ficou inchado de gases, tão intumescido que os encarregados do seu sepultamento foram obrigados a pular em cima do seu estômago para que a tampa do caixão pudesse ser fechada.

Nem todas as tramas tiveram êxito. Cerca de dez anos após a morte de Alexandre VI, o colégio elegeu Leão X, que o autor descreve como “um homem tão ávido por dinheiro, que leiloava chapéus cardinalícios”. Cinco cardeais contrataram um cirurgião florentino para assassiná-lo pela introdução de veneno no ânus, ostensivamente para tratar das hemorróidas papais, mas a conspiração foi descoberta.
Teriam cessado os assassinatos pontifícios com o advento dos tempos modernos? Comwell não responde à pergunta, mas, segundo o que ele descreve como “um livrinho infame intitulado Os Documentos do Vaticano”, de um certo Nino Lo Bello, um assassinato dessa natureza havia ocorrido em 1939. No princípio de fevereiro daquele ano, Pio XI, de 82 anos, planejava um discurso especial contra o fascismo e o anti-semitismo e denunciaria a concordata firmada com Mussolini. II Duce tinha, pois, motivo forte para dar cabo do idoso papa. Conta-se que 24 horas antes de Pio ler o seu discurso para uma reunião especial de bispos, recebeu uma injeção de um Dr. Francesco Petacci. Além de suas funções médicas dentro do Vaticano, Petacci era o pai de Clara Petaccí, amante de Mussolini. Os defensores da teoria da conspiração acreditam que Petacci tenha injetado veneno no papa, pois ele morreu na manhã seguinte, antes de poder ler o seu discurso, cujo texto nunca foi encontrado”.

E agora surge o caso de Albino Luciani, eleito no dia 26 de agosto de 1978, no quarto escrutínio, numa das eleições mais rápidas da história do Vaticano, e morto no dia 28 de setembro do mesmo ano, um dos reinados mais curtos da história do papado. Mas não o mais curto de todos. Este triste privilégio coube a Urbano VII, que, em 1590, ocupou o trono de São Pedro durante 13 dias, morrendo de morte natural, assim como Celestino III, que, em 1045, foi papa por 22 dias e Marcelo II, que reinou 23 dias, em 1555. O único que teve morte violenta foi o já citado Dâmaso II, cujo papado, em 1048, durou 24 dias.

No prefácio de Um Ladrão na Noite, John Cornwell escreve: “Esta é a história de uma investigação das circunstâncias da morte súbita do Papa João Paulo I(...) e as alegações de que teria sido assassinado por altos prelados da Igreja Católica Romana”.O Vaticano esperava que o autor obtivesse provas conclusivas da falsidade dessas teorias. Cornwell se confessa um católico relapso. Passou sete anos estudando em seminários ingleses, mas deixou a Igreja em conseqüência de uma decisão cons¬ciente de rejeitar tanto a vocação como a fé em Deus. Não obstante, dedicou-se a um projeto de investigação de fenômenos “sobrenaturais”, como a história de Padre Pio, o Estigmático; as mais recentes provas a respeito do Santo Sudário de Turím, e as aparições de Maria às crianças de Medjugorje, na Iugoslávia. Foram essas últimas que levaram o escritor a Roma, em outubro de 1987. e ali foi súbita e surpreendentemente estimulado pelo Vaticano a considerar um projeto inteiramente diferente: a verdadeira história da morte de João Paulo I.

O primeiro encontro de Cornwell foi com o Arcebispo John Foley, presidente da Comissão de Comunicação Social, “um homem grande e calvo (...) o rosto inocente e redondo como uma bolacha”. Depois de uma troca de amenidades, Foley surpreendeu o autor, dizendo: “Há quem diga que o Papa João Paulo 1 foi envenenado por um de nós, aqui, no Vaticano. Um de nós esta sendo apontado como ~ suspeito principal. E pena que alguém como você não escreve a verdade sobre o que real¬mente aconteceu (...) Estou certo de que seria mais interessante do que toda essa ficção sensacionalista.’

Desnecessário dizer que john Cornwell aceitou a missão e acabou produzindo Um Ladrão na Noite, um trabalho minucioso e, supõe-se fiel a verdade, o que lhe falta em emoção e drama sobra lhe em precisão e inteireza. É, na verdade, mais um relatório do que uma obra de leitura e como relatório deve ser lido.

Cabe, aqui, uma Biografia de Albino Lucíani. Nasceu em I7 de Outubro de 1912. Filho de um operário francamente socialista.

Freqüentou o seminário locais e foi ordenado em 1935, sendo nomeado vigário – geral de Belluno, sua terra ttata!, Em 1948. Em 1958 foi designado bispo de Vittoria Vencto. A partir de 1969, quando já era Patriarca de Roma, passou a adotar um ponto vista mais de direita. Sua eleição como papa causou quase tanta estupefação com a sua morte 33 dias depois. Como podia o “candidato de Deus” escolhido com tal entusiasmo por cardeais orientados pelo “Espírito Santo” já estar morto?

Como causa mortis, infarto do miocárdio. O papa que tinha 66 anos incompletos e goza de boa saúde. Não morrera dormindo, dizia o comunicado, mas sentado na cama lendo, com os ósculos sobre o nariz.

Na quinzena que se seguiu a morte do papa choveram declarações porta-vozes do Vaticano, de membros da papal, e de importantes testemunhas, oficiais ou não. Nessas declarações, Cornwell detectou dez contradições que persistem até hoje e que envolvem um grave desacordo a respeito dos seguintes pontos:

1) Quem encontrou o corpo?

2) Onde o corpo foi encontrado?

3) A causa oficial da morte.

4) A estimativa da hora da morte.

5) A hora e a legalidade do embalsama¬mento.

6) O que o papa tinha nas mãos no momento da morte.

7) O verdadeiro estado de sua saúde nos meses anteriores à sua morte.

8) O paradeiro dos objetos pessoais do papa que estavam na alcova papal.

9) Se a Cória havia ou não ordenado e realizado uma autópsia secreta.

10) Se os embalsamadores haviam ou não sido chamados antes de o corpo ser oficial¬mente encontrado.

Os boatos de que João Paulo I teria sido assassinado começaram a circular no dia mesmo de sua morte. Uma das primeiras sus¬peitas foi levantada por uma organização ligada ao ultratradicionalista Arcebispo Lefebvre: o papa fora assassinado por “liberais” da igreja católica, porque planejava abolir as modificações introduzidas pelo Concilio Vaticano. Algumas das discrepâncias acima citadas não haviam escapado à atenção do grupo.

A Rádio Vaticano anunciou no dia 29 de setembro que ao morrer, o papa lia A Imitação de Cristo, popular obra de devoção dos católicos. Outras fontes disseram que se tratava de sermões e discursos ou, alternativa¬mente de um discurso que iria proferir ante uma assembléia de jesuítas.

A agência noticiosa italiana ANSA por sua vez, afirmou que o corpo não fora encontrado pelo secretário papal. Padre John Magee, mas por uma irmã. Vincenza, que trazia o desjejum do pontífice, e que seus restos mortais foram descobertos. não às 5h3Omin, mas às 4h3Omin. Que teria acontecido nessa hora crucial?

Mas o despacho mais estranho, também divulgado pela ANSA dizia que os embalsama¬dores, os irmãos Ernesto e Renato Signoracci, foram apanhados em suas casas por um carro do Vaticano às cinco horas da manhã e levados diretamente à morgue da pequena cidade-estado, onde começaram o seu trabalho. Em outras palavras, os irmãos haviam sido chama¬dos antes da descoberta oficial do corpo. O Vaticano nunca se pronunciou a respeito.

A teoria da conspiração dos tradicionalistas continuava a vir à tona, até atingir um bizarro auge em 1983, no livro de Jean-Jacques Thierry, A Verdadeira Morte de João Paulo I segundo o qual o secretário de Estado, Cardeal Jean Villot, teria colocado um sósia no lugar de Paulo VI e de ter planejado o assassinato de João Paulo 1, depois de o infeliz papa ter descoberto um ninho de maçons no Vaticano.

No mesmo ano foi publicado Pontífice, de Max Morgan-Witts e Gordon Thomas, que também defendia a teoria do assassinato, sugerindo que se tratava de um boato circulado pela KGB para desacreditar o Vaticano.

Também em 1983 surgiu um roman-à-clef, intitulado A Batina Vermelha, do francês Ro¬ger Peyrefitte, que combinava uma trama da KGB com uma conspiração da Máfia, os maçons e o Banco do Vaticano. Usando para os seus personagens pseudônimos mal disfarça¬dos (o Arcebispo Paul Marcinkus, por exemplo, chama-se Larvenkus), Peyrefitte sugere uma reviravolta na motivação: o papa não era um reacionário morto por liberais. Ao contrário: era um reformador liberal decidido a acabar com a corrupção. O pano de fundo da intriga era baseado em fatos bem conhecidos. O Banco do Vaticano tinha de fato fortes elos com Roberto Calvi, o ambicioso presidente do Banco Ambrosiano de Milão. Calvi, por sua vez, estava ligado a Michele Sindona, um ad¬vogado e financista siciliano, que estivera preso nos Estados Unidos e na Itália por estelionato. Ambos eram amigos do presidente do Banco do Vaticano, o notório Arcebispo Paul Marcinkus, e estavam associados a Licio GeIli, um financista italiano que controlava a loja pseudomaçônica P-2.

No dia 17 de junho de 1982, após o colapso do Banco Ambrosiano, Calvi foi encontrado enforcado debaixo de uma ponte em Londres. Até hoje não se sabe se foi suicídio ou assassinato, e, em 1986, Sindona morria envenenado numa prisão italiana. Em fins de 1987, Gellífora extraditado da Suíça para Itália, onde era procurado pela Justiça.

No romance de Peyrefitte, Marcinkus e Vil¬lot assassinam o papa com veneno injetado. Ao crime estão associados Calvi, Sindona e Gelli. O motivo imediato dos prelados era evitar a sua demissão. No caso de Marcinkus, sua exoneração teria posto a descoberto o envolvi¬mento maior do Banco do Vaticano em extensas negociatas com a Máfia e os maçons.

Em 1984, o assunto ressurgiu num livro de David Yallop, Em Nome de Deus, com a volta de todos os personagens centrais. Assim como os autores que o precederam, Yallop, na opinião de Cornwell, é forte em motivação e mistérios circunstanciais e fraco em provas conclusivas que ligassem os prelados ao assassinato. E os teóricos da conspiração, fictícios ou reais, o que poderiam atribuir a esses homens de Deus para trair a sua vocação e correr o risco da excomunhão e danação eterna, sem falar nos castigos no mundo dos vivos? Na verdade, o único com um passado não imaculado era Marcinkus, que, segundo revela Cornwell, es¬teve envolvido em escândalos financeiros já em 1972, quando foi investigado pelo FBI por envolvimento na falsificação de bônus no valor de um bilhão de dólares. Sua amizade com Síndona e Calvi era conhecida. Os quatros autores são unânimes em afirmar que o novo papa estava de olho nele e a ponto de expô-lo. As repercussões no mundo financeiro e as implicações para as finanças do Vaticano teriam sido incalculáveis. Até onde iria Marcinkus para evitar o desastre?

Foi enfrentando esse labirinto de contradições que John Cornwell iniciou a sua investigação. Avistou-se com Deus (no sentido figura¬do, é claro) e todo mundo. Entrevistou o próprio Marcinkus, que, entre outras coisas, afirmou jamais se ter envolvido nas finanças do Vaticano. Esteve com Don Diego Lorenzo, o secretário italiano do papa morto. Compareceu a uma missa rezada por João Paulo II e dele ouviu palavras de encorajamento: “Quero que você saiba que tem o meu apoio e a minha bênção neste seu trabalho.”

Em janeiro, Cornwell procurou David YalLlop. que entrevistara a irmã Vincenza e os irmãos Signoracci. A primeira havia morrido em junho de 1983 e os embalsamadores se mostraram tão confusos em seu depoimento a YaIlop, e mais tarde a Cornwell, que a hipótese de uma esclerose avançada não podia ser afastada.

Antes de voltar a Roma, Cornwell se avistou com um cardiologista Americano que passava as férias em Londres. O médico foi taxativo:

“Os cadáveres não ficam sentados, sorridentes e lendo”.


De regresso ao Vaticano, o autor voltou a se encontrar com o Bispo John Magee, que lhe narrou um episódio ocorrido um dia antes da morte de João Paulo I. O papa acusou dores e mandou chamar a irmã Vincenza, recusando-se a ver um médico. Sentindo-se melhor, jantou bem, e Magee perguntou: “Santo Padre, já escolheu a pessoa que vai promover o retiro da próxima Quaresma?” Respondeu afirmativamente e acrescentou logo: “O tipo de retiro de que gostaria neste momento seria uma boa morte”.A morte, segundo Magee era um dos assuntos constantes de suas conversas. Seu papado seria de curta duração e ele seria substituído “pelo estrangeiro”.

E citou uma prece:

Senhor, concede-me a graça de aceitar a morte que me abaterá. No dia seguinte, Deus atendeu o pedido daquele homem modesto e bondoso, cujo mais constante pedido, formulado milhares de vezes durante o seu curto reinado, era: “Senhor, por favor, leva-me”.A magnitude de sua missão o assustava.

Num dos últimos parágrafos de Um Ladrão na Noite, John Cornwell diz, mas não assegura:
“João Paulo, quase com certeza, morreu de embolia pulmonar, devido a uma condição de coagulabilidade anormal do sangue. Necessitava de descanso e medicação monitorada. Se estes tivessem sido receitados, ele quase sem dúvida teria sobrevivido. As advertências de uma doença mortal estavam claras, à vista de todos. Pouco ou nada foi feito para socorrê-lo ou salvá-lo.”

Como sempre, as doenças, vistas em retrospecto, são bem mais fáceis de diagnosticar e de curar.

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Em Nome de Deus - Os Trinta e Três Dias

por: David Yallop

João Paulo I

Quando Albino Luciani abriu as janelas dos aposentos papais, 24 horas depois de sua eleição, o gesto simbolizou todo o seu Pontificado. Ar fresco e os raios do sol penetraram por uma Igreja Católica que se tomara cada vez mais escura e sombria durante os últimos anos de Paulo VI.

Luciani, que se descrevera com franqueza durante os seus dias em Veneza, “Sou apenas um homem pobre, acostumado às coisas pequenas e ao silêncio”, descobria-se agora obrigado a se confrontar com a, grandeza do Vaticano e as intrigas da Cúria. O filho de um pedreiro era agora o Chefe Supremo de uma religião cujo fundador fora o filho de um carpinteiro.

Muitos dos especialistas em Vaticano, que nem sequer levaram em consideração a possibilidade da eleição de Luciani, aclamaram-no como “O Papa Desconhecido”. Ele era bastante conhecido por 99 cardeais para que lhe confiassem o futuro da Igreja, a um homem sem qualquer treinamento diplomático ou experiência curial. O número considerável de cardeais da Cúria fora rejeitado. Em suma, toda a Cúria fora rejeitada, em favor de um homem quieto e humilde, que prontamente anunciou que preferia ser chamado de Pastor ao invés de Pontífice. As aspirações de Luciani logo se tomaram claras: uma revolução total. Estava determinado a levar a Igreja de volta a suas origens, de volta à simplicidade, honestidade, ideais e aspirações de Jesus Cristo.

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Outros antes dele tiveram o mesmo sonho, apenas para que a realidade do mundo, conforme impingida por seus conselheiros, acabasse prevalecendo. Como poderia aquele homem pequeno e modesto realizar sequer os primórdios da transformação material e espiritual que seria necessária?

Ao elegerem Albino Luciani, os cardeais fizeram diversas declarações profundas sobre o que queriam e o que não queriam. Claramente, não queriam um Papa reacionário, que poderia deixar sua marca no mundo com exemplos desconcertantes de intelectualismo incompreensível. Pareceria que haviam buscado causar um impacto no mundo ao elegerem um homem cuja bondade, sabedoria e humildade exemplar seriam manifestas a todos. No caso, foi justamente o que conseguiram. Um pastor empenhado nos cuidados pastorais.

Seu novo nome foi considerado muito comprido pelos romanos que prontamente passaram a tratá-lo de forma mais intima como “Gianpaolo”, uma corruptela que o Papa aceitou alegremente e adotou para assinar cartas, apenas para tê-las devolvidas pelo Secretário de Estado Villot, a fim de serem corrigidas para o titulo formal. Uma dessas cartas, escrita pessoalmente por Luciani, foi para agradecer aos agostinianos pela hospitalidade antes do Conclave. Esse ato simples era típico do homem. Dois dias depois de eleito Papa, tomando-se o líder espiritual de mais de 800 milhões de católicos, Luciani encontrava tempo para agradecer a seus antigos anfitriões.

Outra carta, escrita no mesmo dia, era mais sombria. Escrevendo a um padre italiano, cujo trabalho admirava, Luciani revelou estar consciente do fardo que agora lhe pertencia exclusivamente. “Não sei como pude aceitar. Já estava arrependido no dia seguinte, mas a esta altura era tarde demais.” Um dos seus primeiros atos, ao entrar nos aposentos papais, fora telefonar para sua terra natal no norte.

Falou com um atônito Monsenhor Ducoli, um antigo amigo e colega de trabalho, agora Bispo de Beiluno. Disse ao bispo que sentia “saudade da minha gente”. Depois, falou com o irmão Edoardo, “Veja só o que me aconteceu”. Foram atos particulares; outros, de natureza mais pública, despertariam a imaginação do mundo.
Para começar, havia o seu sorriso. Somente com essa expressão facial de alegria, ele comoveu milhões de pessoas. Era impossível não simpatizar com o homem e experimentar uma sensação agradável. Paulo VI, com sua angústia, afastara milhões de pessoas.

Albino Luciani inverteu dramaticamente a tendência. Recuperou o interesse do mundo pelo Pontificado. E quando o mundo escutou o que havia por trás daquele sorriso, o interesse aumentou. O sorriso nao pode ser encontrado em qualquer livro que alega tornar o leitor um cristão melhor, mas eficazmente projetava a alegria que aquele homem descobrira no cristianismo. O que Luciani demonstrou, numa extensão jamais conhecida antes em qualquer Papa, foi a capacidade de se comunicar, quer pessoalmente ou pelo rádio, imprensa e televisão. Era um trunfo jamais sonhado para a Igreja Católica.

Luciani era uma lição objetiva de como vencer a batalha pelo coração, mente e alma da humanidade. Pela primeira vez na memória viva, um Papa falava a seu povo numa maneira e estilo que todos podiam compreender. O suspiro de alívio dos fiéis foi quase audível. Os murmúrios de satisfação continuaram por todo o veranico de 1978. Luciani começou a levar a Igreja pela longa caminhada de volta ao Evangelho.

O público rapidamente converteu esse homem carismático num tremendo sucesso. Os observadores do Vaticano simplesmente não sabiam como analisá-lo. Ofereceram opiniões imediatas e doutas sobre a escolha do nome papal, falando em “continuidade simbólica”. Luciani involuntariamente demoliu tudo isso no primeiro domingo, ao dizer “João me fez um bispo, Paulo me fez um cardeal”. Não havia muita continuidade simbólica ai. Os especialistas escreveram artigos especulativos sobre o que o novo Papa poderia fazer ou deixar de fazer nas mais variadas questões. Uma parcela considerável dessas especulações se tomara supérflua por um comentário do

Papa João Paulo, em seu primeiro discurso:
— Desejo dedicar ao Concilio Vaticano Segundo meu total ministério, como padre, como mestre, como pastor...

Não havia mais necessidade de especular; bastava consultar as diversas conclusões do Concilio.
No domingo, 10 de setembro, perante uma Praça de São Pedro apinhada, Luciani falou em Deus e disse:
— Ele é nosso Pai; mais do que isso, é nossa Mãe.

João Paulo I

Os especialistas italianos do Vaticano, em particular, ficaram frenéticos. Num pais notório por seu machismo, sugerir que Deus era uma mulher foi julgado por alguns como a confirmação do fim do mundo. Houve muitos debates ansiosos sobre esse quarto membro da Trindade até que Luciani, gentilmente, informou que citara Isaías. A Mãe Igreja, dominada pelos homens, relaxou.

Antes, a 6 de setembro, durante uma Audiência Geral, membros do círculo papal, agitando-se em tomo do Santo Padre de uma maneira que lembrava moscas irritantes ao redor de um cavalo, exibiram publicamente o seu embaraço, enquanto Luciani mantinha 15 mil pessoas completamente fascinadas. Entrando quase a correr no Salão Nervi, inteiramente lotado, ele falou sobre a alma. Não havia nada de extraordinário nisso. Excepcionais foram apenas a maneira e o estilo.

Um homem foi comprar um carro novo na revendedora. O vendedor deu-lhe alguns conselhos: “É um carro excelente, mas deve tratá-lo corretamente. Ponha a melhor gasolina no tanque, o melhor óleo no motor.” Ao que o cliente respondeu: “E impossível. Não suporto o cheiro de gasolina e óleo. Encherei o tanque com champanha, que me agrada muito mais, farei a lubrificação com geléia.” O vendedor deu de ombros. “Faça como quiser, mas depois não venha se queixar se terminar numa vala com o carro. O Senhor fez uma coisa similar conosco: deu-nos este corpo, animado por uma alma inteligente, uma boa vontade. Disse que esta máquina é boa, mas deve ser bem tratada.

Enquanto a elite do Vaticano estremecia por tal profanidade, Albino Luciani sabia perfeitamente que suas palavras eram transmitidas ao mundo inteiro. Espalhe bastante sementes, algumas germinarão. Ele fora presenteado com o mais poderoso púlpito da terra. O uso que fez dessa dádiva foi profundamente comovente. Muitos na Igreja falam ad nauseam das “Boas novas do Evangelho”, enquanto dão a impressão de que comunicam aos ouvintes desastres absolutos. Quando Luciani falava em boas novas, era evidente por toda a sua atitude que se tratava mesmo de boas novas.

Em diversas ocasiões, Luciani tirou um menino do coro para partilhar o microfone com ele, ajudando-o não apenas com a audiência dentro do Salão Nervi. mas também com a audiência mas vasta lá fora. Outros líderes mundiais eram propensos a pegar crianças no colo e beijá-las. Mas ali estava um homem que falava com as crianças e, o que era ainda mais extraordinário, escutava e respondia ao que tinham a dizer.

Ele citava Mark Twain, Jules Verne e o poeta italiano Trissula. Falava de Pinóquio. Já tendo comparado a alma a um carro, fez então uma analogia entre a oração e o sabonete.

A oração bem usada seria um sabonete maravilhoso, capaz de transformar todos nós em santos. Não somos todos santos porque não temos usado esse sabonete o suficiente.

A Cúria estremecia, particularmente determinados bispos e cardeais. O público escutava.

Poucos dias depois da eleição, ele enfrentou mais de mil representantes da imprensa internacional. Censurou-os de maneira gentil por se concentrarem excessivamente nos aspectos triviais do Conclave e não no seu verdadeiro significado, mas reconheceu que o problema deles não era novo e recordou o conselho que um editor italiano dera a um de seus repórteres:

Lembre-se de que o público não quer saber o que Napoleão III disse a Guilherme da Prússia. Quer saber se ele usava calça bege ou vermelha e se fumava um charuto.

Luciani obviamente sentia-se à vontade com os repórteres. Comentara mais de uma vez, ao longo de sua vida, que teria sido jornalista se não fosse um padre. Seus dois livros e numerosos artigos indicam um talento que poderia se comparar ao de muitos correspondentes presentes. Recordando o comentário do falecido Cardeal Mercier, de que o Apóstolo Paulo seria um jornalista se estivesse vivo hoje, o novo Papa demonstrou uma profunda compreensão da importância dos diversos meios de comunicação na ampliação do possível papel moderno do Apóstolo:

— Não apenas um jomalista. Possivelmente chefe da Reuters. Não apenas chefe da Reuters, acho que ele pediria tempo no ar na televisão italiana e na NBC.

Os correspondentes adoraram. A Cúria não achou muito engraçado. Todos os comentários acima referidos foram omitidos da transcrição oficial do discurso. O que permanece para a posteridade é um discurso insípido preparado de antemão, escrito por autoridades do Vaticano, do qual o Papa se afastou muitas vezes, um testemunho mudo e inacurado do espírito e personalidade de Albino Luciani. Essa censura do Vaticano ao Papa tornou-se um fato constante durante o mês de setembro de 1978.

Ilustrissimi, a coletânea de suas cartas aos famosos, era encontrada em forma de livro na Itália desde 1976. Fora um grande sucesso. Agora, com seu autor se tornando o líder de 800 milhões de católicos, o potencial comercial não passou despercebido ao mundo editorial. Executivos começaram a aparecer nos escritórios de Il Messaggero, em Pádua. O mensário católico estava sentado na proverbial mina de ouro, menos os royalties do autor. Para o autor, a verdadeira recompensa era saber que as idéias e comentários das cartas seriam lidos por uma audiência mundial. O fato de que só seriam lidos porque ele se tornara Papa não tinha a menor importância para Luciani. Mais sementes eram espalhadas. Mais germinariam.

Um dos melhores resultados da eleição do novo Papa, que se tornou patente nos dias subsequentes ao Conclave, foi que os intérpretes, observadores, especialistas e analistas do Vaticano se tornaram redundantes. Só era necessário uma reprodução literal. Havendo isso, as intenções do novo Papa eram bastante claras.

A 28 de agosto, foi anunciado o início de sua revolução papal. Assumiu a forma de uma declaração do Vaticano de que não haveria coroação, pois o novo Papa se recusava a ser coroado. Não haveria a sedia gestato ria, a cadeira em que se carregava o Papa, não haveria tiara cravejada de esmeraldas, rubis, safiras e diamantes. Não haveria penas de avestruz, não haveria a cerimônia de seis horas. Em suma, foi abolido o ritual com que a Igreja demonstrava que ainda ansiava pelo poder temporal. Albino Luciani fora obrigado a se empenhar numa longa e tediosa discussão com os tradicionalistas do Vaticano antes que sua vontade prevalecesse. Luciani, que jamais usou o real “nós”, a primeira pessoa do plural monárquica, decidira que o Pontificado real, com suas ostentações de grandeza temporal, seria substituído por uma Igreja que mais se assemelhasse aos conceitos de seu fundador. A coroação” converteu-se numa missa simples. O absurdo de transportar o Pontífice a balançar numa cadeira, como um califa das Mil e Uma Noites, foi suplantado por um Pastor supremo, subindo calmamente os degraus do altar. Com esse gesto, Luciani aboliu mil anos de história e fez a Igreja voltar mais um pouco no caminho para Jesus Cristo.

A tiara de pedras preciosas foi substituida pelo pálio, uma estola branca de lã sobre os ombros do Papa. O monarca dera passagem ao pastor. A era da Igreja pobre começara oficialmente.

Entre os 12 chefes de Estado e outros representantes de dezenas de países à cerimônia, havia homens a quem o Papa preferia evitar. Em particular, pedira à sua Secretaria de Estado que não convidasse os lideres da Argentina, Chile e Paraguai para a sua missa inaugural. Mas o departamento do Cardeal Villot já expedira os convites, sem antes consultar Albino Luciani. Presumiram que haveria a coroação tradicional, e a lista de convidados refletia essa suposição.

Consequentemente, participaram da missa na Praça de São Pedro o General Videla, da Argentina, o ministro do exterior chileno e o filho do presidente do Paraguai, representantes de países em que os direitos humanos não eram considerados prioridades urgentes. Manifestantes italianos protestaram contra a presença deles e houve quase 300 prisões. Posteriormente, Albino Luciani seria criticado pela presença desses homens na missa. Os críticos não sabiam que toda a culpa deveria ser atribuida ao Cardeal Villot. Quando os comentários de censura apareceram, Luciani não estava em condições de responder e Villot se manteve em silêncio.

Na audiência particular que se seguiu à missa, Luciani, o filho de um socialista que abominava todos os aspectos do fascismo, não deixou qualquer dúvida ao General Videla de que herdara as opiniões do pai. Falou especialmente de sua preocupação com “Los Desaparecidos”, os milhares de pessoas que sumiram misteriosamente do território argentino. Ao final da audiência de 15 minutos, o general já desejava ter atendido às pressões de última hora de emissários do Vaticano para que nao fosse a Roma.

A audiência com o Vice-Presidente Mondale, dos Estados Unidos, foi um encontro mais agradável. Mondale entregou ao novo Papa um livro contendo a primeira página de mais de 50 jornais americanos, noticiando a eleição de Luciani. Um presente mais deferente foi uma primeira edição do livro Vida no Mississippi, de Mark Twain. Era evidente que alguém no Departamento de Estado americano trabalhara bem.

Assim começou o Pontificado de João Paulo I, com objetivos e aspirações definidos. Antes da missa inaugural, ele falara ao Corpo Diplomático credenciado no Vaticano. Sua própria equipe diplomática empalideceu visivelmente quando ele comentou, em nome de toda a Igreja Católica:

Não temos bens temporais para trocar, não temos interesses econômicos a discutir. Nossas possibilidades de intervenção são especificas e limitadas, de um caráter especial. Não interferem com os assuntos puramente temporais, técnicos e políticos, que são problemas de seus governos. Assim, nossas missões diplomáticas junto às suas mais altas autoridades civis, longe de serem uma sobrevivência do passado, constituem um testemunho do nosso profundo respeito pelo poder temporal legitimo e do nosso intenso interesse pelas causas humanas que esse poder temporal deve promover.

“Não temos bens temporais para trocar...” Era uma sentença de morte pública ao Vaticano S.A. Tudo o que restava indefinido era o número de dias e meses em que continuaria a funcionar. Os homens dos mercados financeiros internacionais, em Milão, Londres, Tóquio e Nova York, analisaram com o maior interesse as palavras de Luciani. Se ele realmente falava a sério, então haveria muitas mudanças. Tais mudanças não se limitariam ao movimento de pessoas deixando o Banco do Vaticano e a APSA, mas inevitavelmente incluiria uma drástica redução das atividades do Vaticano S.A. Os homens dos mercados financeiros internacionais poderiam ganhar bilhões se adivinhassem corretamente o rumo por que enveredaria essa nova filosofia do Vaticano. Albino Luciani queria uma Igreja pobre para os pobres. O que ele planejava fazer com os que haviam criado uma Igreja rica? O que planejava fazer com a riqueza?

A humildade de Luciani foi responsável pelo nascimento de diversas concepções errôneas. Muitos observadores concluíram que esse homem obviamente santo era simples e sem qualquer complexidade, carecendo dos talentos culturais de seu antecessor, Paulo VI. A realidade era que Luciani possuía uma cultura muito mais rica e uma sofisticação muito maior do que Paulo. Seus talentos eram tão excepcionais que esse homem extraordinário podia parecer completamente plebeu. Tinha a simplicidade que só é adquirida por uns poucos, a simplicidade que deriva de uma profunda sabedoria.

Uma das peculiaridades de nossa época é que a humildade e gentileza são inevitavelmente encaradas como indicações de alguma espécie de fraqueza. Pois muitas vezes indicam justamente o oposto, uma grande força.

Quando o novo Papa comentou que andara folheando o Anuário do Vaticano para descobrir quem fazia o que, muitos na Cúria sorriram e concluíram que ele seria facilmente manobrável, um homem que não teriam a menor dificuldade para controlar. Havia outros que sabiam que não era bem assim.

Homens que conheciam Albino Luciani há muitos anos observavam e esperavam. Conheciam o aço no fundo, a força para tomar decisões difíceis ou impopulares. Muitos me falaram desses atributos ocultos. Monsenhor Tiziano Scalzotto, Padre Mario Senigaglia, Monsenhor Da Rif, Padre Bartolomeo Sorge e Padre Busa são apenas cinco dos muitos que me falaram sobre a força interior do Papa João Paulo I. O Padre Busa comentou:

Sua mente era tão forte, tão dura e tão contundente quanto um diamante. Era lá que estava o seu poder real. Compreendia e possuía a capacidade de chegar ao ceme de um problema. Não podia ser sufocado. Enquanto todos aplaudiam o Papa risonho, eu esperava que ele tirare fuori le unghie, revelasse as suas garras. Era uni homem de tremendo poder.

Sem um grupo pessoal, pois nenhuma Máfia veneziana substituiu a turma de Milão nos aposentos papais, Albino Luciani precisaria de toda a sua força interior se queria evitar se tomar o prisioneiro da Cúria do Vaticano.

Nos primeiros dias depois do Conclave, a máquina governamental do Vaticano não se manteve ociosa. No domingo, 27 de agosto, após seu discurso do meio-dia à multidão, Luciani almoçou com o Cardeal Jean Villot. Como Secretário de Estado do Papa Paulo desde abril de 1969, Villot criara reputação de serena competência. Durante o Conclave, Villot, como camerlengo, funcionou virtualmente como substituto do Papa, ajudado pelos comitês de cardeais. Luciani pediu a Villot que continuasse como Secretário de Estado por “mais um pouco, até que eu encontre meu caminho”. Villot, aos 73 anos de idade, esperava o momento de aposentar-se. Luciani designara Villot para seu Secretário de Estado e confirmara todos os chefes curiais em seu cargos anteriores. Mas a Cúria sabia perfeitamente que era apenas uma medida temporária. Sempre o homem prudente das montanhas, o novo Papa queria ganhar mais algum tempo. “Deliberação. Decisão. Execução.” Se a Cúria queria saber como agiria o novo Papa, bastava ler sua carta a São Bernardo. Muitos o fizeram. E também efetuaram uma pesquisa mais profunda sobre o Papa João Paulo I. O que descobriram causou consternação em diversos setores do Vaticano e um profundo prazer de expectativa em outros.

A morte do Papa Paulo VI fizera aflorar muitas hostilidades que existiam na aldeia do Vaticano. A Cúria Romana, o corpo administrativo central da Igreja, vinha se empenhando numa guerra interna há vários anos; somente a habilidade de Paulo evitara que a maioria das batalhas chegasse ao conhecimento público. Agora, depois da rejeição no Conclave, a guerra curial alcançou os aposentos papaís. Albino Luciani queixou-se amargamente da situação a alguns amigos que foram visitá-lo:

— Quero aprender depressa o ofício de Papa, mas quase ninguém explica problemas e situações de uma maneira meticulosa e imparcial. Passo a maior parte do tempo a escutar comentários desfavoráveis sobre tudo e sobre todos.

A outro amigo do norte ele disse:

— Já notei que há duas coisas que parecem estar em escassez no Vaticano: honestidade e uma boa xícara de café.

Havia tantas facções curiais quanto garotos no coro da Capela Sistina. Havia a Cúria do Papa Paulo VI, totalmente empenhada em garantir não apenas que a memória do falecido Papa fosse constante e continuamente homenageada, mas também a evitar que houvesse qualquer desvio de suas posições, opiniões e pronunciamentos.

Havia a Cúria que era favorável ao Cardeal Giovanni Benelli e a Cúria que desejava vê-lo no Inferno. O Papa Paulo VI elevara Benelli a Subsecretário de Estado, o segundo homem depois do Cardeal Villot. Ele se tornara rapidamente o homem forte do Papa, assegurando o cumprimento de sua política. Paulo o transferira para Florença e o promovera a fim de protegê-lo, durante os seus últimos anos. Agora, seu protetor estava morto, mas os punhais afiados permaneciam embainhados, Luciani era Papa por causa de homens como Benelli.

Havia facções curiais que favoreciam ou se opunham aos Cardeais Baggio, Felici e Bertoli. Havia facções que queriam mais poder central e controle, outras que queriam menos.

Durante toda a sua vida, Albino Luciani evitara as visitas ao Vaticano. Mantivera seus contatos com a Cúria Romana num nível mínimo. Em decorrência, antes de sua eleição tinha provavelmente menos inimigos na Cúria do que qualquer outro cardeal. Mas era uma situação que mudou rapidamente. Ali estava um Papa que considerava a “mera execução” como a função básica da Cúria. Ele acreditava numa maior divisão do poder com os bispos do mundo inteiro e planejava descentralizar a estrutura do Vaticano. Recusando-se a ser coroado, ele contrariara os tradicionalistas. Outra inovação que não poderia granjear para Luciani a estima dos membros da Cúria de mentalidade material foi a sua instrução para que o salário extra, que automaticamente se pagava por ocasião da eleição de um novo Papa, fosse reduzido à metade.

É claro que havia muitos entre os três mil membros da Cúria que lealmente serviriam e amariam o novo Papa; mas neste mundo as forças negativas muitas vezes predominam. Assim que o resultado da eleição foi conhecido, a Cúria ou determinados setores dela entraram em ação. Em poucas horas, uma edição especial do Osservatore Romano estava nas ruas, com uma biografia completa do novo Papa. A Rádio Vaticano já estava irradiando detalhes similares.

Como um exemplo da melhor maneira de influenciar o pensamento do mundo sobre um líder de Estado até então desconhecido, o tratamento que o Osservatore Romano dispensou a Albino Luciani é definitivo. Porque deliberadamente descreveu uma pessoa que só existia na mente reacionária e opressiva de quem escreveu os detalhes biográficos, essa edição em particular do Osservatore Romano é também um excelente exemplo do motivo pelo qual o jomal semi-oficial do Vaticano tem sido comparado desfavoravelmente ao Pravda. Aproveitando os “fatos oficiais”, muitos jornalistas pressionados por prazos improrrogáveis descreveram um homem que não existia. The Economist, para citar apenas um entre centenas de exemplos, disse o seguinte a respeito do novo Papa: “Ele não se sentiria muito à vontade em companhia do Dr. Hans Kung.” Uma pesquisa revelaria que Luciani e Hans Kung mantinham uma correspondência cordial e frequentemente enviavam livros um ao outro. Mais alguma pesquisa mostraria que Luciani muitas vezes citara Kung favoravelmente em seus sermões. Praticamente todos os jornais e revistas do mundo que publicaram perfis do novo Papa cometeram erros similares.

Ler a edição especial do Osservatore Romano é tomar conhecimento de um novo Papa que era ainda mais conservador do que Paulo VI. A distorção se estendia por diversas opiniões de Luciani, mas uma em particular é extremamente relevante quando se considera a vida e a morte de Albino Luciani: o controle da natalidade. O jornal do Vaticano descreveu um homem que era um intrépido e incondicional partidário da Humanae Vitae.

Ele efetuou um estudo meticuloso da questão da paternidade responsável, consultou especialistas médicos e teólogos. Alertou para a grande responsabilidade da Igreja ao se pronunciar sobre uma questão tão delicada e controvertida.

Isso era perfeitamente acurado e verdadeiro. O que vem depois é que era completamente incorreto.

Com a publicação da encíclica Humanae Vitae não podia mais haver margem para dúvidas. O bispo de Vittorio Veneto foi um dos primeiros a divulgá-la e a insistir, aos que estavam confusos com o documento, que seus ensinamentos eram incontestáveis .

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Quando a Cúria entra em ação, é uma máquina formidável. Sua eficiência e rapidez deixariam atordoados outros serviços civis. Homens da Cúria Romana apareceram no Colégio Gregoriano e removeram de lá todos os estudos e documentos referentes ao período de estudo de Luciani. Outros membros da Cúria foram a Veneza, Vittorio Veneto, Belluno. Onde quer que Luciani estivera, a Cúria ia até lá. Todas as cópias do documento de Luciani sobre o controle da natalidade foram confiscadas e imediatamente guardadas nos Arquivos Secretos do Vaticano, juntamente com sua tese sobre Rosmini e diversos outros escritos. Pode-se dizer que o processo de beatificação de Albino Luciani começou no dia em que ele foi eleito Papa. Seria igualmente acurado dizer que o trabalho da Cúria para encobrir o verdadeiro Albino Luciani começou no mesmo dia.

O que determinados setores da Cúria compreenderam, com um profundo choque, foi que, ao elegerem Albino Luciani, os cardeais haviam lhes dado um homem que não deixaria a questão do controle da natalidade ser encerrada pela Humanae Vitae. Um estudo cuidadoso por membros da Cúria do que Luciani dissera, não apenas a seus paroquianos em público, mas também a seus amigos e colegas em particular, prontamente indicou que o novo Papa era favorável ao controle artificial da natalidade. O quadro impreciso falso que o Osservatore Romano pintara de um homem que aplicava rigorosamente os princípios da Humanae Vitae foi o tiro inicial num contra-ataque destinado a conter Albino Luciani dentro dos limites da encíclica de seu antecessor. Rapidamente seguido por outra rajada.

A agência noticiosa UPI descobriu que Luciani fora a favor de uma decisão do Vaticano que permitisse o controle artificial da natalidade. Os jornais italianos também divulgaram matérias sobre o documento de Luciani encaminhado ao Papa Paulo pelo Cardeal Urbani, de Veneza, com uma recomendação favorável à pílula anticoncepcional. A Cúria apressadamente localizou o Padre Henri de Riedmatten, que fora o secretário da Comissão Papal de Controle da Natalidade. Ele descreveu os relatórios em que Luciani se opusera a uma encíclica que condenasse o controle artificial da natalidade, alegando que isso não passaria de uma “fantasia” . Riedmatten também informou que Luciani nunca fora membro da comissão, o que era verdadeiro. Depois negou que Luciani houvesse algum dia escrito uma carta ou relatório sobre o assunto enviado ao Papa Paulo.

Essa negativa e a maneira como foi apresentada é um exemplo da duplicidade que predomina na Cúria. O documento de Luciani chegou a Roma por intermédio do Cardeal Urbani e, portanto, com a sua aprovação. Negar que existisse um documento assinado por Luciani era tecnicamente correto. Negar que Luciani, em nome dos outros bispos da região do Veneto, tivesse encaminhado tal documento ao Papa, por intermédio do Patriarca de Veneza, era uma mentira iníqua.

Ironicamente, nas três primeiras semanas de seu Pontificado, Albino Luciani já dera os primeiros passos significativos para inverter a posição da Igreja Católica na questão do controle artificial da natalidade. Enquanto essas providências eram tomadas, a imprensa internacional permanecia na ignorância, por cortesia do Osservatore Romano e da Rádio Vaticano, controlados por determinados membros da Cúria Romana, que já projetara uma imagem inteiramente falsa das opiniões de Albino Luciani.

Durante o seu Pontificado, Luciani citou diversos pronunciamentos e encíclicas do Papa Paulo VI. Mas, expressivamente, não houve qualquer referência à Humanae Vitae. Os defensores dessa encíclica foram alertados para as opiniões do novo Papa quando souberam, consternados, que o discurso de aceitação para o sucessor de Paulo, preparado pela Secretaria de Estado e contendo referências candentes à Humanae Vitae, fora alterado por Luciani, que suprimira a todas. A facçao anticontrole da natalidade dentro do Vaticano descobriu em seguida que, em maio de 1978, Albino Luciani fora convidado a comparecer e falar num congresso internacional realizado em Milão, a 21-22 de junho. O objetivo principal do congresso era celebrar o 10º aniversário da encíclica Humanae Vitae. Luciani respondera que não falaria no congresso e também não compareceria. Entre os que compareceram e falaram, em louvor da Humanae Vitae, estava o cardeal polonês Karol Wojtyla.

Agora, em setembro, enquanto a imprensa mundial fielmente repetia as mentiras do Osservatore Romano, Albino Luciani foi ouvido nos aposentos papais a dizer a seu Secretário de Estado, Cardeal Villot:

— Terei o maior prazer em falar com essa delegação dos Estados Unidos sobre a questão. Na minha opinião, não podemos deixar a situação como está.

A “questão” era a população mundial. A “situação” era a Humanae Vitae. A conversa continuou e Villot ouviu o Papa João Paulo I manifestar uma opinião que muitos outros, inclusive o secretário particular dele, Padre Diego Lorenzi, já tinham escutado várias vezes. O Padre Lorenzi é somente um dos muitos que foram capazes de reproduzir para mim ás palavras exatas de Lucíani:

Estou à par do período de ovulação de uma mulher, com seu âmbito de fertilidade de 24 à 36 horas. Mesmo que se admita uma vida de 48 horas para o espermatozóide, o tempo máximo de concepção possível é inferior a quatro dias. Num ciclo regular, isso significa quatro dias de fertilidade e 24 (lias de infertilidade. Como pode ser um pecado falar em 28 em vez de 24 dias?

O que provocara essa conversa realmente histórica fora um contato com o Vaticano da Embaixada Americana em Roma. Esta forá instruída pelo Departamento de Estado americano e procurada pelo congressista James Scheuer. O congressista presidia o Comitê Sobre População dá Câmara dos Representantes e era também vice-presidente do fundo da ONU para pesquisas sobre população. A história do documento de Luciani ao Papa Paulo VI sobre o controle da natalidade alertara Scheuer e seu comitê para a possibilidade de mudança na posição da Igreja. Scheuer achava que era improvável que seu grupo obtivesse uma audiência com Luciani logo depois da eleição, mas concluiu que valia a pena a tentativa de pressionar o Vaticano através do Departamento de Estado e da Embaixada Americana em Roma. Pois Scheuer ouviria boas notícias.

Villot. como muitos que cercavam Luciani, encontrava uma considerável dificuldade para se ajustar ao novo Pontificado. Nomeado por Paulo VI, ele desenvolvera ao longo dos anos um íntimo relacionamento de trabalho com o falecido Papa. Aprendera à admirar o estilo Montini. Agora, o Hãmlet cansado do mundo de 81 anos fora substituido por um otimista Henry VI, que aos 65 anos era relativamente um rapaz.

O relacionamento entre Luciani e seu Secretário de Estado era bastante desconfortável. O novo Papa achava Villot frio e distante, sempre comentando o que Paulo VI diria a respeito dessa questão ou como Paulo VI trataria aquele problema. Paulo VI estava morto, mas era evidente que Villot e uma parcela significativa da Cúria não haviam aceitado esse fato, e que o estilo Martini de resolver problemas morrera com ele.

O discurso que o novo Papa pronunciara, 24 horas depois do Conclave, fora de caráter geral. O verdadeiro programa começou à ser formulado somente durante os primeiros dias de setembro de 1978. Foi desencadeado com a inspiração dos primeiros 100 dias do Papa João XXIII.

João fora eleito Papa à 28 de outubro de 1958. Nos primeiros 100 dias, efetuara diversas nomeações cruciais, inclusive a do Cardeal Domenico Tardini para à Secretaria de Estado, um posto que se achava vago desde 1944. O mais importante foi à sua decisão de convocar o Concílio Vaticano Segundo. Essa decisão tornou-se pública a 25 de janeiro de 1959, 89 dias depois da eleição.

Agora que usava as sandálias do pescador, Albino Luciani estava determinado a seguir o exemplo de João de 100 dias revolucionários. No alto de sua lista de prioridades de reformas e mudanças estava a necessidade de alterar radicalmente o relacionamento do Vaticano com o capitalismo e o desejo de mitigar os sofrimentos que testemunhara pessoalmente e que derivavam diretamente da Humanae Vitae.

De acordo com o Cardeal Benelli, o Cardeal Felici e outras fontes do Vaticano, o austero Cardeal Villot ficou escutando contrariado, enquanto o novo Papa discorria sobre os problemas que a encíclica causara. Durante as entrevistas com ele, ficou claro que sua atitude com relação à este assunto concordava vivamente com Villot.

Poucos meses antes, Villot louvara a encíclica, no 10º aniversário de sua publicação. Numa carta ao Arcebispo John Quinn, de São Francisco, Villot reafirmara a oposição de Paulo à anticoncepção artificial. O Secretário de Estado ressaltara como Paulo considerava importante esse ensinamento e que estava “de acordo com a Lei de Deus”.

Houve muito mais, no mesmo espírito. Agora, menos de dois meses depois, era obrigado a escutar o sucessor de Paulo assumir uma posição inversa. O café esfriou, enquanto Luciani se levantava e andava de um lado para o outro no gabinete, falando sobre alguns efeitos que a Humanae Vitae produzira durante à última década.

A encíclica que fora projetada para reforçar à autoridade papal, negando que pudesse haver qualquer mudança no ensinamento tradicional sobre o controle da natalidade, tivera justamente o efeito oposto. As evidências eram irrefutáveis. Na Bélgica, Holanda, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e muitos outros países não apenas houvera uma acentuada oposição à encíclica, mas também uma desobediência ostensiva. A máxima se tomara rapidamente à de que, se um padre não assumisse uma posição tolerante no confessionário, o pecador procuraria um padre mais liberal. Luciani citou exemplos dessa contradição que conhecia pessoalmente, na região do Veneto.

A teoria da Humanae Vitae podia parecer um ponto de vista moral ideal quando proclamada do interior do reduto exclusivamente masculino do Vaticano. A realidade que Luciani observara no norte da Itália e no exterior demonstrava claramente a desumanidade da encíclica. Naquela década, a população mundial aumentara em mais de três quartos de um bilhão de pessoas.

Quando Villot objetou que o Papa Paulo ressaltara as virtudes do método anticoncepcional natural, Luciani limitou-se à sorrir. Mas não era o sorriso cheio e radiante que o público conhecia, antes um meio sorriso triste.

— Eminência, o que nós, velhos celibatários, sabemos realmente sobre os desejos sexuais das pessoas casadas?

Essa conversa, a primeira de muitas que o Papa teve com seu Secretário de Estado sobre o assunto. ocorreu no gabinete dos aposentos papais na terça-feira, 19 de setembro. Eles discutiram o problema por quase 45 minutos. Quando à reunião terminou e Villot estava se retirando, Luciani acompanhou-o até a porta e acrescentou:

Eminência, conversamos sobre o controle da natalidade durante cerca de 45 minutos. Se as informações forem corretas, se as estatísticas forem precisas, então no período de nossa conversa mais de mil crianças com menos de cinco anos de idade morreram de desnutrição. Durante os próximos 45 minutos, enquanto nós dois aguardamos com expectativa a nossa próxima refeição, outras mil crianças morrerão de desnutrição. Amanhã, a esta hora, 30 mil crianças que se encontram vivas neste momento estarão mortas de desnutrição. Deus nem sempre provê.

O Secretário de Estado do Vaticano aparentemente não foi capaz de encontrar uma resposta adequada.

Todos os detalhes da possível audiência com uma delegação dos Estados Unidos sobre população mundial foram mantidos em sigilo, tanto pelo Vaticano como pelo Departamento de Estado americano. Tal reunião, ocorrendo tão cedo no Pontificado de Luciani, seria corretamente encarada como extremamente significativa, se transpirasse para o conhecimento público.

Um significado ainda maior seria atribuído ao encontro pela opinião pública mundial se fosse divulgado por que o Papa João Paulo I não compareceria à Conferência de Puebla, no México. Era à seqúência de uma conferência muito importante que se realizara em Medellin, na Colômbia. em 1968.

Em Medellin, os cardeais e bispos da América Latina injetaram uma vida nova na Igreja Católica no continente sul-americano. A declaração contida no ““Manifesto de Medellín” incluia à afirmativa de que o esforço básico de sua Igreja no futuro seria procurar se relacionar com os pobres, os abandonados e negligenciados. Era uma mudança revolucionária numa Igreja que anteriormente sempre se relacionara com os ricos e os poderosos. A ““Teologia da Libertação”, que emergiu de Medellín, alertava as diversas juntas militares e regimes ditatoriais da América do Sul para o fato de que à Igreja tencionava trabalhar para acabar com a exploração financeira e à injustiça social. Fora, na verdade, um chamado às armas. Inevitavelmente, a resistência a essa filosofia liberal veio não apenas dos diversos regimes, mas também dos elementos reacionários dentro da Igreja. A conferência de Puebla, uma década depois, prometia ser crucial. A Igreja continuaria a seguir pela mesma trilha ou haveria um recuo para a antiga posição odiosa? O fato de o novo Papa recusar o convite para comparecer à conferência ressalta à importância que atribuia à seu encontro com o comitê de Scheuer. Ele certamente conhecia as implicações da reunião em Puebla.

No Conclave, menos de uma hora depois de ser eleito Papa, Luciani fora procurado pelos Cardeais Baggio e Lorscheider, dois homens-chave na projetada conferência no México. Puebla fora adiada por causa da morte do Papa Paulo VI. Os cardeais queriam saber se o novo Papa estava disposto a aprovar uma nova data para a conferência no México.

Luciani discutiu os problemas que seriam tratados em Puebla, em profundidade, menos de uma hora depois de sua eleição. Concordou que à conferência deveria ser realizada e foi definida a data, de 12 a 28 de outubro. Durante a conversa com Baggio e Lorscheider, ele surpreendeu os dois cardeais com seu conhecimento e percepção das questões que seriam examinadas em Puebla. Em relação à seu comparecimento, recusou-se à assumir um compromisso firme logo no início do Pontificado. Quando Villot informou-o que o comitê de Scheuer gostaria de ter uma audiência a 24 de outubro’. Luciani disse à Baggio e Lorscheider que não poderia ir a Puebla. E mandou que Villot confirmasse o encontro com à delegação americana. Fora a confirmação final para Luciani de que seu lugar era no Vaticano durante as semanas seguintes. Havia outros motivos válidos para a sua decisão de permanecer em Roma. O Papa João Paulo I concluíra, em meados de setembro, que a sua primeira prioridade deveria ser à de pôr a casa em ordem. O problema do Banco do Vaticano e sua filosofia operacional tornara-se de suprema importância para ele.

Luciani agiu com uma urgência que faltara perceptivelmente nos últimos anos do seu antecessor imediato. A vassoura nova não tinha a intenção de limpar todo o Vaticano nos primeiros 100 dias, mas ele estava ansioso para que, nesse período, à Igreja começasse a mudar de direção, particularmente em relação ao Vaticano S.A.

Ainda em sua primeira semana, o novo Papa deu uma indicação do rumo que seguiria. “Concordou” com o desejo do Cardeal Villot de ser substituído em um dos seus muitos cargos, a presidência do Conselho Pontifical, Cor Unum. O cargo foi para o Cardeal Bernard Gantin. Cor Unum é um dos principais funis por que passam os recursos coletados no mundo inteiro. a serem distribuídos às nações mais pobres.

Para Luciani, Cor Unum era um elemento vital em sua filosofia de que as finanças do Vaticano deveriam ser inspiradas pelo Evangelho. Villot foi gentilmente substituído, mas mesmo assim substituido, poí Gantin, um homem de grande espiritualidade e evidente honestidade.

A aldeia do Vaticano fervilhava com especulações. Alguns proclamavam que nunca haviam conhecido Sindona, Calvi ou qualquer outro da Máfia de Milão que infestara o Vaticano durante o período do Papa Paulo. Outros, em seus esforços individuais de sobrevivência, começaram a transmitir informações aos aposentos papais.

Poucos dias depois da designação de Gantin, o novo Papa encontrou em sua mesa uma cópia de uma circular do Controle de Câmbio Italiano. Não havia à menor dúvida de que a circular era uma resposta direta à carta aberta de Il Mondo ao Papa, descrevendo uma situação inadmissível para um homem que se comprometera com a pobreza pessoal e com uma Igreja pobre.

A circular, assinada pelo Ministro do Comércio Exterior Rinaldo Ossola, fora enviada à todos os bancos italianos. Lembrava que o IOR, o Banco do Vaticano, é ““para todos os efeitos uma instituição bancária não-residente”. . . em outras palavras, um banco estrangeiro. Assim, as relações entre o Banco do Vaticano e as instituições de crédito italianas eram governadas pelas mesmas regras que se aplicavam a todos os outros bancos estrangeiros.

O ministro estava particularmente preocupado com os abusos de câmbio, envolvendo à exportação ilegal de capitais da Itália. A circular era também uma inequívoca confissão ministerial de que tais abusos eram realidade. Os círculos financeiros italianos encararam-na como uma tentativa de reprimir pelo menos uma das muitas atividades escusas do Banco do Vaticano. No Vaticano, foi considerada uma confirmação adicional de que o dobre de finados para à presidência no banco do Bispo Paul Marcinkus soava cada vez mais alto.

Uma história que acreditei ser boato, mas que muitos no Vaticano e na imprensa italiana me garantiram ser verdadeira, começou a circular pelo Vaticano no início de setembro de 1978. Dizia respeito à venda do Banca Cattolica deI Veneto e à viagem de Albino Luciani ao Vaticano na tentativa de evitar à venda do banco à Roberto Calvi. Já narrei anteriormente o encontro de Luciani e Benelli. A versão que circulou introduziu elegantes variações em estilo italiano. Luciani se defrontara com Paulo VI que respondera:

— Mesmo você tem de fazer esse sacrifício pela Igreja. Nossas finanças ainda não se recuperaram dos prejuízos causados por Sindona. Mas leve seu problema à Monsenhor Marcinkus.

Pouco depois, Luciani estivera no escritório de Marcinkus e repetira a lista de pedidos da diocese com relação à venda do banco. Marcinkus o escutara e respondera:

— Eminência, não tem nada melhor para fazer hoje? Faça seu trabalho e farei o meu.

A esta altura Marcinkus lhe mostrara a porta de saída. Qualquer um que já tenha visto Marcinkus em ação saberá que faz jus ao seu apelido: “o Gorila”. Para os bispos, monsenhores, padres e freiras no Vaticano é certo que à confrontação realmente aconteceu.

Agora, inesperadamente, o pequeno e pacato homem de Belluno podia remover Marcinkus num piscar de olhos.

Membros da Cúria organizaram uma loteria. Ganharia quem adivinhasse o dia em que Marcinkus seria formalmente removido do banco. O Papa, que acreditava em prudência, ainda reunia as provas necessárias. Além da investigação sendo conduzida por conta do Papa pelo Cardeal Villot, o risonho João Paulo I, com a típica astúcia das montanhas, abriu outras linhas de inquérito. Começou a conversar com o Cardeal Felici sobre o Banco do Vaticano. E também telefonou para o Cardeal Benelli, em Florença.

Foi por intermédio de Giovanni Benelli que o Papa tomou conhecimento da investigação do Banco da Itália no Banco Ambrosiano. Era tfpico da maneira como funcionava a Igreja Católica. O cardeal em Florença disse ao Papa em Roma o que estava acontecendo em Milão.

O ex-segundo homem da Secretaria de Estado do Vaticano formara uma vasta rede de contatos por toda a Itália. Licio Geldi, da P2, ficaria devidamente impressionado com a extensão e a qualidade das informações a que o Cardeal Benelli tinha acesso. Incluía fontes muito bem situadas dentro do Banco da Itália. Foram essas fontes que informaram ao cardeal sobre a investigação no império de Roberto Calvi, um inquérito que se aproximava do climax em setembro de 1978. O que mais preocupou Benelli e posteriormente Albino Luciani era a parte da investigação que levantava as ligações de Calvi com o Vaticano. O contato no Banco da Itália estava convencido de que a investigação seria seguida por graves acusações criminais contra Roberto Calvi e possivelmente alguns de seus diretores. Parecia igualmente certo que o Banco do Vaticano estava bastante envolvido em diversas transações que violavam uma variedade de leis italianas. Os homens no Banco do Vaticano que estavam sendo mais investigados, como criminosos em potencial, eram Paul Marcinkus, Luigi Mennini e Pellegrino de Strobel.

Benelli aprendera, por quase uma década, que não se influenciava Luciani com a insistência vigorosa para que assumisse um determinado curso de ação. Ele me disse:

Com o Papa Luciani, apresentavam-se os fatos, fazia-se uma recomendação e depois se lhe dava tempo e espaço para considerar. Depois de absorver todas as informações disponíveis, ele decidia... e quando o Papa Luciani decidia, nada, mas absolutamente nada, podia demovê-lo ou contê-lo. Era um homem gentil, é verdade. E humilde. Mas quando se lançava a um determinado curso de ação, era inabalável como um rochedo. Bennelli não era o único a ter acesso aos pensamentos dos altos dirigentes do Banco da Itália. Membros da P2 estavam transmitindo exatamente as mesmas informações para Licio Gelli em Buenos Aires. E ele, por sua vez, mantinha plenamente informados os seus companheiros de viagem, Roberto Calvi e Umberto Ortolani. Outros membros da P2, infiltrados no poder judiciário em Milão, informaram a Gelli que, concluída a investigação sobre o Banco Ambrosiano, tudo seria encaminhado ao Juiz Emilio Alessandrini. Poucos dias depois que Gelli tomou conhecimento disso, um grupo terrorista de extrema esquerda, baseado em Milão, Prima Linea, recebeu um aviso de seu contato no sistema judiciário sobre o homem recomendado como sua próxima vítima em potencial. O líder terrorista pregou uma fotografia do alvo na parede de seu apartamento: Juiz Emilio Alessandrini. A P2 movia-se por muitos caminhos, inclusive o Vaticano

No início de setembro, Aibino Luciani descobriu que, por algum meio misterioso, fora acrescentado à lista de distribuição exclusiva de uma insólita agência de notícias chamada L’Osservatore Político (O.P.). Era dirigida pelo jornalista Mino Pecorelli e invariavelmente divulgava histórias escandalosas, que posteriormente eram confirmadas como altamente verdadeiras. Agora, juntamente com políticos, jornalistas e outras pessoas que tinham a necessidade de tomar conhecimento das coisas em primeira mão, o Papa leu uma reportagem sobre o que a O.P. classificou de A Grande Loja do Vaticano”. O artigo dava os nomes de 121 pessoas que supostamente pertenciam a lojas maçônicas. Diversos leigos estavam incluidos na lista, mas abrangia principalmente cardeais, bispos e prelados em altos postos. Os motivos de Pecorelli para divulgar a lista eram simples. Ele estava empenhado numa luta com seu antigo Grão-Mestre, Licio Geldi. Pecorelli era um membro da P2... um membro desencantado.

Estava convencido de que a publicação da lista dos maçons do Vaticano causaria um profundo embaraço ao Grão-Mestre da P2, especialmente porque muitos eram amigos íntimos de Gelli e Ortolani.

Se a informação era correta, então Luciani estava virtualmente cercado por maçons... e ser um maçom significava a excomunhão automática da Igreja Católica. Antes do Conclave, houvera rumores de que vários dos mais eminentes papabile eram maçons. Agora, a 12 de setembro, o novo Papa recebia a lista completa. Luciani tinha a opinião de que era inconcebível que um sacerdote se tornasse membro da maçonaria. Sabia que diversos católicos leigos de suas relações pertenciam a várias Lojas. Da mesma forma, tinha amigos que eram comunistas. Aprendera a conviver com essa situação, mas achava que os critérios eram diferentes quando se tratava de alguém do clero, A Igreja Católica decretara há muito tempo que se opunha implacavelmente à maçonaria. O novo Papa estava aberto a uma discussão da questão, mas uma lista de 121 homens que eram membros confirmados da maçonaria não chegava a constituir uma discussão.

O Secretário de Estado Cardeal Villot, nome maçônico Jeanni, registrado numa Loja de Zurique a 6 de agosto de 1966, com o número 041/3. Ministro do Exterior Monsenhor Agostino Casaroli. Cardeal Vigário de Roma Ugo Poletti. Cardeal Baggio. Bispo Paul Marcinkus e Monsenhor Donato de Bonis, do Banco do Vaticano. O aturdido Papa leu uma relação que parecia o “Quem é Quem” do Vaticano. Notando com alívio que nem Benelli nem o Cardeal Felici apareciam na lista, que incluia até mesmo o secretário particular do Papa Paulo, Monsenhor Pasquale Macchi, Albino Luciani prontamente telefonou para Felici e convidou-o para tomar um café.

Felici informou ao Papa que uma lista similar circulara discretamente pelo Vaticano, há mais de dois anos, em maio de 1976. O motivo para o seu reaparecimento era obviamente uma tentativa de influenciar o pensamento do novo Papa sobre nomeações, promoções e remoções.

— A lista é verdadeira? — perguntou Luciani.

Felici disse ao Papa que, em sua opinião, era uma hábil mistura. Alguns nomes na lista eram de fato maçons, outros não. E acrescentou:

— Essas listas parecem proceder da facção Lefebvre... não foram criadas por nosso irmão francês rebelde, mas certamente usadas por ele.

O Bispo Lefebvre fora um incômodo para o Vaticano e particularmente para o Papa Paulo VI durante alguns anos. Um tradicionalista que considerava o Concilio Vaticano Segundo como a suprema heresia, ignorara quase que totalmente as conclusões conciliares. Alcançara notoriedade internacional com sua insistência de que a missa fosse celebrada exclusivamente em latim. Suas posições de extrema direita, numa variedade de assuntos, resultaram numa condenação pública pelo Papa Paulo VI. Em relação ao Conclave que elegera o Papa João Paulo I, os partidários de Lefebvre haviam inicialmente declarado que se recusariam a reconhecer o novo Papa, por ter sido eleito num Conclave que excluira os cardeais com mais de 80 anos. Posteriormente, eles lamentaram a escolha como ‘‘sinistra’’.

Luciani refletiu sobre a situação por um momento, antes de perguntar:

— Quer dizer que listas como esta existem há mais de dois anos?

— Isso mesmo, Santidade.

— A imprensa tomou conhecimento delas?

— Tomou, Santidade. A lista completa jamais chegou a ser publicada, mas saiu um nome aqui, outro ali.

— E qual foi a reação do Vaticano?

— A normal.., ou seja, nenhuma reação.

Luciani riu. Gostava de Pericle Felici. Curial até a raiz dos cabelos, tradicionalista em seu pensamento, mas um homem espirituoso e sofisticado, de cultura considerável.

— Eminência, na revisão da lei canônica, que ocupou tanto de seu tempo, o Santo Padre por acaso previu uma mudança na posição da Igreja em relação à maçonaria?

— Ao longo dos anos, houve muitos grupos de pressão. Determinadas partes interessadas exortavam a que se assumisse uma posição mais “moderna”. O Santo Padre ainda estava considerando esses argumentos quando morreu.

Felici continuou a deixar claro que entre os que defendiam fortemente um afrouxamento da lei que declarava que qualquer católico que se filiasse à maçonaria estava automaticamente excomungado estava o Cardeal Jean Villot.

Nos dias que se seguiram, o Papa passou a observar mais atentamente alguns de seus muitos visitantes. O problema era que os maçons pareciam extraordinariamente com o resto da humanidade. Enquanto Luciani considerava esse problema imprevisto, diversos membros da Cúria Romana, intensamente simpáticos à visão do mundo de extrema direita de Licio GeIli, vazavam informações para fora do Vaticano. Essas informações acabaram chegando a seu destino, Roberto Calvi.

As notícias do Vaticano eram sombnias. O banqueiro milanês estava convencido de que o Papa queria se vingar pela tomada do Banca Cattolica deI Veneto. Não podia conceber que a investigação de Luciani no Banco do Vaticano não fosse pessoalmente orientada e inspirada por seu desejo (de atacar Roberto Calvi . Lembrava muito bem a ira do clero de Veneza e os protestos de Luciani, sem falar no encerramento de muitas contas diocesanas e a transferência para um banco rival. Por alguns dias, Calvi chegou mesmo a considerar a possibilidade de subornar Luciani. Quem sabe se uma doação substancial ao Vaticano não resolveria o problema? Uma doação generosa para as obras de caridade? Mas tudo o que aprendera a respeito de Luciani dizia a Calvi que lidava com um tipo de homem que só encontrara raramente nos negócios, alguém que era totalmente incorruptível.

Enquanto os dias de setembro passavam, Calvi viajou pelo continente sul-americano, Uruguai, Peru, Argentina. Com ele estavam sempre Gelli ou Ortolani. Marcinkus caindo, um novo homem logo descobriria qual era a situação e a verdadeira natureza das relações entre o Banco do Vaticano e o Banco Ambrosiano. Mennini e De Strobel seriam afastados. O Banco da Itália seria informado e Roberto Calvi passaria o resto de sua vida na prisão.

Ele cobrira todas as eventualidades, considerara todos os perigos em potencial, bloqueara todas as brechas. Era perfeito o que criara: não um roubo, nem mesmo um grande roubo, mas sim um roubo contínuo numa escala até então jamais imaginada. Em setembro de 1978, Calvi já roubara mais de 400 milhões de dólares. Os conglomerados no exterior, os associados estrangeiros, as empresas de fachada... a maioria dos ladrões experimentaria um senso de triunfo por realizar um único assalto a banco. Calvi, no entanto, estava empenhado em roubar bancos às dúzias. Todos entravam em fila para serem roubados, disputando o privilégio de emprestar dinheiro ao Banco Ambrosiano.

Agora, no meio de seu sucesso irresistível, ele tinha de lidar com inspetores do Banco da Itália que não podiam ser corrompidos e a cada dia mais se aproximavam da conclusão de sua investigação. Gelli lhe assegurara que o problema podia e seria controlado. Mas como poderia até mesmo Gelli, com todo o seu imenso poder e influência, manipular um Papa?

Enquanto os dias passavam, Calvi foi ficando obcecado pelo problema. Como se pode impedir um homem honesto de destruí-lo? Se fosse um mortal comum, poderia ser pressionado, talvez ameaçado. Se isso não desse certo, haveria muitos que não hesitariam em silenciar uma ameaça... permanentemente. Mas não se tratava de um mortal comum. Era o Chefe de Estado da Cidade do Vaticano. Mais objetivamente, era o Papa. Como se podia ameaçar um Papa?

Se Albino Luciani, por algum milagre, morresse antes de substituir Marcinkus, então Calvi disporia do tempo de que precisava. Era verdade que seria apenas um mês. Mas muita coisa coisa pode acontecer em um mês. E muita coisa poderia acontecer no próximo Conclave. Deus não produziria outro Papa que quisesse reformar as finanças do Vaticano, não é mesmo? Como sempre, ele virou-se para Licio Gelli e confidenciou-lhe os seus piores receios. Depois de um longo telefonema internacional para Gelli, Roberto Calvi sentiu algum alivio. Gelli o tranqúilizara. O “problema” podia e seria resolvido.

Enquanto isso, a rotina cotidiana nos aposentos papais rapidamente se assentava em um novo padrão, em torno do novo ocupante. Mantendo, o hábito de uma vida inteira, Luciani se levantava muito cedo. Optara por dormir na cama usada por João X.XIII, ao invés de na cama de Paulo VI. O Padre Magee disse a Luciani que Paulo se recusara a dormir na cama de João “por causa de seu respeito pelo Papa João”. Ao que Luciani respondeu:

— Pois dormirei na cama de João por causa do meu amor por ele. Embora o despertador na mesinha-de-cabeceira estivesse preparado para tocar às 5:00, caso dormisse demais, o Papa era sempre despertado por uma batida na porta às 4:30. Informava-o que a Irmã Vincenza deixara um bule de café ali. Até mesmo esse ato simples ficara sujeito à interferência curial. Em Veneza, a freira se acostumara a bater na porta, gritar um “bom-dia” e levar o café até a cama para Luciani. Os ativos monsenhores do Vaticano acharam que esse ato simples violava algum protocolo imaginário. Protestaram junto ao aturdido Luciani, que acabou concordando que o café fosse deixado na porta do gabinete adjacente. O hábito de tomar um café logo depois de acordar derivava de uma operação de sinusite realizada muitos anos antes. A operação deixara Luciani com um gosto amargo na boca ao despertar. Quando viajava, se não havia café disponível, chupava uma bala.

Depois de tomar o café, Luciani fazia a barba e tomava um banho, Das 5:00 às 5:30, praticava seu inglês com a ajuda de um curso gravado em cassette. Deixava o quarto às 5:30 e ia para a pequena capela particular ali perto. Orava, meditava e dizia o seu breviário até as 7:00.

Recebia então a companhia de outros membros do círculo papal, particularmente seus secretários, Padre Lorenzi e Padre Magee. Lorenzi, também novo no Vaticano, perguntara ao Papa se Magee, um dos secretários do Papa Paulo, não poderia continuar no posto. Luciani, que se impressionara com a capacidade do Padre Magee de providenciar xícaras de café, durante os dois primeiros dias do seu Pontificado, prontamente concordara. Os três homens tinham a companhia das freiras da Congregação de Maria Bambina durante a missa, cujas funções eram limpar e cozinhar para o Papa. As freiras, Madre Superior Elena, Irmãs Margherita, Assunta, Gabriella e Clorinda logo receberam a ajuda de mais uma pessoa, a Irmã Vincenza, de Veneza, por sugestão do Padre Lorenzi. Vincenza trabalhara para Luciani desde os seus dias em Vittorio Veneto e conhecia seus jeitos, seus hábitos. Ela o acompanhara a Veneza e fora a. madre superiora da comunidade de quatro freiras que cuidava do Patriarca. Sofrera um ataque cardíaco em 1977 e fora hospitalizada. Os médicos disseram-lhe que nunca mais deveria trabalhar, limitando-se a ficar sentada e dar instruções às outras freiras. Vincenza ignorara as determinações médicas e continuara a supervisionar a cozinha da Irmã Celestina, a se movimentar constantemente em torno do Patriarca, lembrando-o de tomar seu remédio para a pressao baixa.

Para Albino Luciani, Vincenza e o Padre Lorenzi representavam seu único vinculo com as terras do norte da Itália, que agora só veria raramente e onde nunca mais tornaria a viver. E um pensamento profundo saber que, ao ser eleito Papa, um homem passa imediatamente a viver onde possivelmente morrerá e com toda certeza será enterrado. E como viver em seu próprio cemitério.

O café da manhã, de cafe latte, um pão e uma fruta, era servido logo depois da missa, ás 7:30. Como Vincenza diria às outras freiras, alimentar Luciani era um desafio considerável. Ele geralmente se mostrava indiferente ao que comia e seu apetite era como o de um canário. Como muitos que haviam conhecido a pobreza extrema, ele detestava o desperdício. O que sobrara de um jantar especial para convidados seria uma de suas refeições no dia seguinte.

Ao café da manhã, Luciani lia diversos jornais italianos. Determinara que o diário Il Gazzetino, de Veneza, fosse acrescentado à lista. Entre 8:00 e 10:00, o Papa trabalhava em seu gabinete, preparando-se para a primeira audiencia. Entre 10:00 e 12:30, com homens como Monsenhor Jacques Martin, Prefeito da Residência Pontifical, tentando fazer com que as pessoas entrassem e saíssem no horário, o Papa recebia e conversava com os visitantes, no segundo andar do Palácio Apostólico.

Martin e outros membros da Cúria não demoraram a descobrir que Luciani era um homem de vontade própria e firme. Apesar das objeções murmuradas, as conversas do Papa com os visitantes tinham o hábito de se prolongar além do horário, acarretando a maior confusão para a programação. Homens como Monsenhor Martin representam uma atitude predominante no Vaticano de que todos poderiam se desincumbir a contento de suas funções se não fosse pelo Papa.

Um almoço de minestrone ou macarrão, seguido por qualquer outra coisa que Vincenza tivesse preparado para segundo prato, era servido as 12:30. Mesmo isso dava margem a comentários. O Papa Paulo sempre almoçava às 13:30. O fato de uma coisa tão banal inspirar comentários excitados nó Vaticano é indicativo de quanto o lugar é uma aldeia. Os rumores se tornaram ainda mais intensos quando se espalhou a noticia de que o Papa aceitava a presença de mulheres à sua mesa de refeições. A sobrinha Pia e a cunhada provavelmente entraram para o livro de recordes do Vaticano. Luciani fazia uma pequena sesta entre 13:30 e 14:00. De pois, passeava um pouco pelo terraço ou pelos jardins do Vaticano. Ocasionalmente, era acompanhado pelo Cardeal Villot; com mais freqúência, Luciani lia. Além do breviário, encontrava prazer em autores tão diversos como Mark Twain e Sir Walter Scott. Ele voltava a seu gabinete pouco depois das 16:00, estudava o conteúdo de um envelope recheado que era entregue por Monsenhor Martin, relacionando os visitantes do dia seguinte e um breve sumário a respeito de cada um.

As 16:30, enquanto tomava uma xícara de chá de camomila, o Papa recebia em seu gabinete, o “Tardella”, os diversos cardeais arcebispos e secretários de congregações que constituíam o seu ministério. Eram reuniões importantes, pois garantiam o funcionamento seguro das engrenagens da Igreja Católica.

A refeição da noite era às 19:45. Às 20:00, enquanto ainda comia Luciani assistia à televisão. Seus companheiros ao jantar, a não ser que houvesse convidados especiais., eram os Padres Lorenzi e Magee.

Depois do jantar, havia mais preparativos para as audiências do dia seguinte. O Papa dizia a parte final do breviário diário e em seguida se retirava para dormir, em torno das 21:30.

O jantar, assim como o almoço que o precedera, seria simples e sem sofisticações. A 5 de setembro Luciani recebeu um padre veneziano, Padre Mario Ferrarese. Para convidar o padre aos aposentos papais, Luciani deu a desculpa de que desejava retribuir a hospitalidade que Padre Mario lhe dispensara em Veneza. Preferia a companhia de um padre paroquiano a considerar o fato de que os ricos e poderosos da Itália tentavam conseguir que partilhasse de sua mesa. Aquela refeição em particular foi servida por dois membros da equipe papal, Guido e Gian Paolo Guzzo. O Papa pediu notícias de Veneza, a seguir observou tranquílamente:

— Peça às pessoas por lá que rezem por mim porque não é fácil ser um Papa.

E dirigindo-se aos irmãos Guzzo disse:

— Como temos um convidado devemos servir-lhe uma sobremesa.

Após alguma demora, taças de sorvete foram servidas à mesa papal. Para os de fora, vinho. Luciani se contentava com água mineral.

Essa era a rotina diária do Papa João Paulo I... uma rotina que ele tinha a maior satisfação em perturbar de vez em quando. Sem avisar a ninguém, saía inesperadamente a passear pelos jardins do Vaticano. Podia-se pensar que era uma simples diversão, mas um passeio improvisado lançava o protocolo do Vaticano e os guardas suíços na maior confusão. Luciani já causara consternação entre os oficiais da Guarda Suiça ao conversar com homens de sentinela e também pedir que se abstivessem de ajoelhar-se cada vez que se aproximava. Ele comentou para o Padre Magee:

— Quem sou eu para que se ajoelhem na minha presença?

Monsenhor Virgilio Noe, o mestre-de-cerimônias, suplicou-lhe que não conversasse com os guardas e se limitasse a um aceno de cabeça silencioso. O Papa perguntou por quê. Noe abriu os braços numa reação de espanto.

— Santo Padre, isso simplesmente não se faz. Nenhum Papa jamais falou com os guardas.

Albino Luciani sorriu e continuou a falar com os guardas. Era muito diferente dos primeiros dias do Pontificado de Paulo, quando padres e freiras ainda ficavam de joelhos para conversar com o Papa, mesmo quando fosse pelo telefone.

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A atitude de Luciani em relação ao telefone também provocou alarme entre os tradicionalistas da Cúria. Tinham de lidar agora com um Papa que se considerava perfeitamente capaz de discar para alguém que desejasse falar e atender ligações. Ligava para amigos ern Veneza. Telefonava para diversas madres superioras apenas para uma conversa inconsequente. Certa ocasião, comentou com seu amigo Padre Bartolomeo Sorges que gostaria que o Padre Dezza, um jesuíta, ouvisse sua confissão. Uma hora depois, o Padre Dezza telefonou para combinar a visita. A voz ao telefone informou-o:

— Lamento muito, mas o secretário do Papa não está no momento. Posso ajudar?

— Quem está falando?

— O Papa.

Simplesmente não se fazia assim. Nunca acontecera antes e talvez nunca mais torne a acontecer. Os dois homens que atuavam como secretários de Luciani negaram categoricamente que jamais tivesse acontecido. Era inconcebível. Mas aconteceu realmente.

Luciani começou a explorar o Vaticano, com seus 10 mil cômodos e corredores, 997 escadas, sendo que 30 secretas. Muitas vezes deixava subitamente os aposentos papais, sozinho ou acompanhado apenas pelo Padre Lorenzi. E também de repente aparecia nos escritórios da Cúria.

— Estou apenas descobrindo os caminhos por aqui — ele explicou uma ocasião ao surpreso Arcebispo Caprio, Subsecretário de Estado.

Eles não gostavam. Não gostavam absolutamente. A Cúria estava acostumada a um Papa que conhecia o seu lugar, que atuava através dos canais burocráticos. Mas aquele Papa circulava por toda parte, se intrometia em tudo, e a pior de tudo, queria fazer mudanças. A batalha pela sedia gestatoria, a cadeira em que os papas anteriores eram transportados, começou a assumir proporções extraordinárias. Luciani a banira para a depósito. Os tradicionalistas iniciaram uma luta para trazê-la de volta. O fato de coisas tão insignificantes ocuparem o tempo de um Papa e um comentário esclarecedor sobre as perspectivas de determinados setores da Cúria Romana.

Luciani tentou argumentar com homens como Monsenhor Noe como se faz com uma criança. O mundo deles não era o seu e o Papa não estava disposto a mudar. Explicou a Noe e aos outros que circulava a pé em público porque não se considerava melhor do que qualquer outro homem. Detestava a cadeira e o que ela simbolizava.

— Mas as multidões não podem vê-lo sem a cadeira — protestou um representante da Cúria. — Todos estão pedindo a sua volta. Todos devem poder ver o Santo Padre.

Obstinadamente, Luciani lembrou que aparecia com frequência na televisão e que todos os domingos aparecia na sacada para o Angelus. Disse também o quanto detestava a idéia de ser virtualmente carregado nos ombros de outros homens.

— Mas se Sua Santidade procura uma humildade ainda mais profunda do que claramente já tem, o que poderia ser mais humilhante do que ser carregado na cadeira que tanto detesta? Diante desse argumento, o Papa reconheceu a derrota. Em sua segunda audiência pública, foi levado ao Salão Nervi na sedia gestatoria.

PARTE 2