HISTÓRIA E CULTURA

As mulheres, o casamento e o poder na Roma imperial - Parte 2

romimpe2O casamento de Júlia e Agripa revelou-se imediatamente fecundo: Caio César e depois Lúcio nasceram em 21 e 17, separados por uma moça, Júlia, a Jovem. A partir de agora, podia pensar-se que a suces­são estava assegurada. Augusto apressa-se, em 17, a celebrar os jogos seculares, que simbolizam o início de uma era de prosperidade e de paz, a época que os filhos de Júlia auguram para Roma.

Mas, cinco anos depois, Agripa morre subitamente e eis Augusto à procura de um tercei­ro marido para a sua filha. Desta vez, não pode furtar-se às instâncias de Lívia e escolhe Tibério. Durante alguns anos, os dois esposos entendem-se bem, mas, mais tarde, o desentendimento surge no casal. Recente­mente, foram evidenciadas as suas razões profundas41: Tibério foi esco­lhido apenas como "protetor" dos jovens príncipes. Augusto apenas o destinava a um papel secundário e temporário e isso Júlia não podia aceitar, embora a modéstia de Tibério se acomodasse muito bem a esse papel. Júlia, depois de ter esperado ser um dia a companheira do senhor, abomina regressar ao segundo lugar. Diz isso a Tibério e acusa-o de covardia. Tibério, por fim, decide deixar Roma e retirar-se para Rodes para viver como simples cidadão.

Este exílio de Tibério, esta partida a que Augusto tentou por todos os meios opor-se, continua ainda hoje bastante envolto em mistério. Tibério, provavelmente, sentia-se em uma posição falsa. Já se começava a murmu­rar em Roma que conspirava para afastar Caio e Lúcio. Era uma calúnia, mas esta tinha tudo para que nela se acreditasse. Não é natural desejar o poder, sobretudo quando se tem junto de si uma mulher cuja ambição insaciável é conhecida de todos? Tibério não desejava, com certeza, o poder. É, pelo menos, o que sabemos, ou julgamos saber. Mas Tibério era considerado, no seu tempo, um mestre na arte de dissimular, uma arte que lhe vinha da mãe, e as suas recusas e a atitude apagada não convenciam ninguém.

Tibério, ao retirar-se para Rodes, fugiria apenas dos riscos de uma situação ambígua? Uma tradição persistente sustenta que Júlia não lhe foi fiel e que ele fugiu também à desonra. Os historiadores antigos con­tam muitas histórias escandalosas acerca da filha de Augusto, repetidas à saciedade ao longo dos tempos. Falam-nos da sua coquetaria, que a levava a vestir-se, por vezes, com muito pouca decência, a ponto de pro­vocar os comentários irritados do pai. Falam-nos também das palavras que lhe são atribuídas em resposta à surpresa de alguns amigos ao veri­ficarem a que ponto as crianças que dera a Agripa se assemelhavam ao seu pai: "Só aceito passageiro quando o porão está cheio”42. Em suma, Júlia tornou-se o símbolo das torpezas que as pessoas gostam de imaginar nas sombras do palácio imperial e como que uma Messalina avant la lettre. Em tais assuntos, é tão difícil aceitar como contradizer os juízos da tradição, e podem ser alegados argumentos equivalentes tanto a favor da acusação como da defesa. Podemos dizer que é pouco verosímil que Júlia pudesse levar, durante muito tempo, uma vida de deboche, em uma cidade tão ávida de escândalos como Roma, quando todos os olhos estavam voltados para ela e quando a polícia imperial e, talvez, a clarividên­cia de Lívia tornavam tal licenciosidade impossível. Mas também pode­mos salientar que Júlia, esposa dissimulada enquanto esperou chegar ao poder, se entregou abertamente ao deboche, para o qual a sua verdadeira natureza a dotou, uma vez perdidas as esperanças depositadas em Tibério, e que talvez tenha começado as suas traições antes da partida do marido para Rodes. É possível, também, que se tenha feito, durante anos, como que uma conspiração de silêncio sobre os seus desregramentos, ninguém se incomodando em informar o imperador, e com Lívia a esperar, paci­entemente, a sua hora. Aliás, Júlia não foi a única grande dama a aceitar, por vezes, encontros clandestinos. O próprio Augusto, já o recordámos, não respeitava a honra das “matronas” e houve quem assegurasse que as leis sobre o adultério não lhe foram impostas senão por senadores que pretendiam embaraçá-lo43.

Não se pode negar, contudo, que Júlia, depois da partida de Tibério para Rodes, teve várias ligações. Tinha trinta e três anos, estava no auge da sua beleza e a sua natureza violenta levava-a a exceder todos os limi­tes nos seus prazeres. No entanto, não era apenas a busca do prazer que a levava a rodear-se de amantes. A lista dos seus “amigos” foi feita pelo historiador Veleio Patérculo. Um nome sobretudo chama a atenção, o de Julo Antônio, filho de Antônio e de Fúlvia e um dos genros de Otávia. Julo parece ter sido o preferido, mas partilhava os favores de Júlia com um certo Apio Cláudio Pulcro e talvez, embora isso não seja uma certe­za, com um dos filhos de P. Clódio. Havia também um Semprônio Graco e um Cornélio Cipião. Em suma, encontramos em redor desta mulher os nomes mais famosos da aristocracia e não deveríamos surpreender-nos se se admitisse, como tudo convida a fazer, que Júlia, atraindo a si estes jovens, procurava menos satisfazer os seus sentidos do que formar uma conspiração contra o seu próprio pai44. Ela queria reinar. Ora, Augusto destinava o poder a Caio e a Lúcio César, que adotara, retirando-os assim à sua mãe, que não podia sequer exercer a mais pequena influên­cia sobre eles. Aliás, Júlia não tinha nenhuma apetência para a posição de imperatriz-mãe. Queria ser a companheira de um príncipe, a “primei­ra dama de Roma”, e substituir Lívia. Para isso, não via outro meio se­ não destronar Augusto, ou seja, assassiná-lo. Para o fazer, iria servir-se do seu ascendente sobre os jovens nobres a que dispensava os seus favo­res. Compreendemos, assim, por que tinha feito de Antônio seu favorito. Pensava, com ou sem razão, que a lembrança dos dias anteriores a Áccio não desaparecera e que podia existir um “partido antoniano” disposto a empunhar armas pelo filho do vencido. Era uma opinião compartilhada, evidentemente, pelo próprio Antônio, que, além disso, desejava vingar o pai.

Podemos facilmente imaginar a cólera, quase o desespero, de Augusto quando soube que a sua própria filha planejava um parricídio e que re­nascia contra si, e do seu próprio sangue, a velha coligação de uma mu­lher e de um Antônio! Os outros amigos de Júlia também tinham muitas acusações contra o novo regime. Estavam saudosos do tempo da “liber­dade”, quando os nobres detinham o poder sem o partilhar. Era uma nova conspiração, formada por um círculo de jovens irresponsáveis, pro­vavelmente sem grande influência real, mas perigosos devido à sua pró­pria loucura, em que se pensava recomeçar os idos de Março.

Sêneca deixou desta conspiração um quadro que se suspeita ser exa­gerado, mas que se baseia, certamente, em alguma verdade, porque outros testemunhos confirmam vários dos seus detalhes:

"Amantes introduzidos aos bandos em casa dela, passeios vagabundos du­rante a noite, em turbas alegres e avinhadas, através da cidade. O próprio fórum e o rostro onde seu pai tinha promulgado as leis sobre o adultério, escolhidos pela filha para os seus excessos. Reuniões diárias no Mársias, ao mesmo tempo que, passando de adultera a prostituta profissional, se arrogava o direito de tudo experimentar no abraço de um amante desconhecido".45

Júlia tinha cúmplices na sua própria casa, designadamente uma liberta chamada Febe, que se suicidou logo que Augusto foi informado destas escapadelas noturnas46.

Não deixa de ser um pouco surpreendente que os conjurados tenham escolhido o fórum, ainda que em plena noite, para seus conciliábulos. Tal­ vez julgassem que a sua melhor salvaguarda era precisamente a publicida­de. Mas, sobretudo, estavam a desafiar a opinião pública. Júlia, tendo de­cidido cortar com a austeridade e mesmo com a decência, quis afirmar o seu direito soberano, que o seu estatuto parecia garantir-lhe, quis afrontar todas as conveniências. É possível também que tenha sido impelida para estas loucuras por Antônio, que se recordava das insolências do seu pai. Mas Antônio podia permitir-se transformar em lugar de deboche a casa de Pompeu e escandalizar a aristocracia no início da sua convalescência da guerra civil. Ele era Antônio, o vencedor, o companheiro do ditador. Antônio, o seu filho, era apenas o herdeiro de um nome perigoso. Só po­deria sobreviver aderindo ao novo regime. Não tinha sido em vão que Roma vivera durante vinte e cinco anos sob a autoridade moralizadora de Augusto. O tempo da “vida inimitável” tinha passado.

Augusto acaba por saber tudo. Foi, diz-nos Dião Cássio, o último a ser informado. Só o alertaram quando as intenções reais dos conjurados foram descobertas e a sua cólera não poupou ninguém. O escândalo ti­nha durado uns três anos. Foi em 2 a.e.c. que se deu a punição. Julo Antônio foi condenado à morte. Júlia foi enviada para o exílio na ilha de Pandatária (atual Ventotene), ao largo da costa da Campânia, e viveu aí como prisioneira, não tendo por companhia senão a sua mãe, Escribônia, que pediu e obteve o direito de compartilhar a sua pena. Depois da morte de Augusto, o primeiro cuidado de Tibério foi agravar ainda mais o seu destino (entretanto, tinha sido transferida para Reggio di Calabria), a ponto de morrer de privações e de miséria, ao fim de alguns meses. Os outros amantes de Júlia foram apenas afastados: menos culpados, talvez simples comparsas que os dois protagonistas não julgaram conveniente introduzir no seu segredo, tiveram a vida poupada e puderam viver à sua vontade na residência que lhes foi designada.

Alguns anos mais tarde, em 8 d. C., um novo drama, aparentemente bastante semelhante ao primeiro, veio ainda perturbar a casa imperial. Desta vez, a culpada era Júlia, a Jovem, a filha de Júlia e Agripa. As circunstâncias em que se deu o escândalo são ainda mais obscuras do que as que envolveram a condenação da primeira Júlia. Oficialmente, as acusações eram as mesmas: seguindo o exemplo da mãe, a segunda Júlia, que era mulher de um certo Emílio Paulo, teria tido uma ligação ilícita com um jovem nobre, D. Júnio Silano47. Mas certos indícios permitem pensar que isso foi apenas um pretexto: o seu marido (como sabemos por Suetônio) foi executado por ter conspirado contra Augusto48. Por outro lado, o exílio de Júlia, a Jovem, parece ter coincidido com o afas­tamento do seu irmão Agripa Póstumo, que foi acusado de ser um Brutus vigoroso e cruel49. É bastante inquietante ver assim deportar, um após outro, os dois últimos filhos de Júlia e Agripa, os únicos em que ainda corria o sangue de Augusto e que não se encontravam ligados aos Claudii. A outra filha, Agripina, a mais velha, ficou provavelmente a dever a sua salvação ao casamento com Germânico, o neto de Lívia. Finalmente, no mesmo ano, o poeta Ovídio foi exilado, o que pode bem ter acontecido em relação com alguma tentativa para retirar a herança de Augusto à “ninhada” de Lívia. Tibério fora, por fim, adotado por Augusto, ao mesmo tempo que Agripa Póstumo. O velho príncipe hesitava em deserdar completamente os que descendiam do seu sangue: nesta data, em 6 d.e.c., Agripa Póstumo tinha atingido os 18 anos e o que se designou mais tarde como sendo a sua “loucura”50 não seria, por certo, ainda evidente. É duvidoso que esta se tenha declarado abertamente em poucos meses, a ponto de impor o seu afastamento. Não podemos, na verdade, impedir-nos de suspeitar que o drama que atingiu sucessivamente os últimos descendentes de Augusto e de Escribônia pode ser o epílogo da política pacientemente conduzida por Lívia. Tibério, apesar do desagrado de Augusto, devia ficar como o único herdeiro. Era necessário evitar a todo o custo que, quando chegasse o momento, emergisse um partido “legitimista”, capaz de arrancar aos Claudii a herança tão cobiçada do senhor defunto. Por isso, Tácito, ao relatar a morte de Júlia, a Jovem, um dos acontecimentos de 28 d.e.c., podia escrever:

"Nessa mesma época morreu Júlia, acusada de adultério e condenada por Augusto, embora fosse sua neta, e exilada para as ilhas Tremiti, não distantes das costas da Apúlia. Aí viveu exilada durante vinte anos, graças aos recursos que Lívia lhe enviava, a qual, depois de ter derrubado, com as suas intrigas secretas, os filhos do primeiro casamento quando estavam no cume da sua ventura, aparentava piedade para com eles na sua ruína".51

Eis como decorreu o bom e frutuoso casamento com que Augusto se enternecia no seu leito de morte.

Os dramas que dilaceraram a casa de Augusto e colocaram o Império nas mãos do “republicano” Tibério têm a sua origem na paixão de Otávio, ao tirar Lívia ao seu primeiro marido. Foi uma união que, justamente, se poderia dizer maldita, porque foi estéril e porque teve por efeito fazer passar o principado para as mãos dos Claudii, privando dele os represen­tantes legítimos da gens Julia. O desejo de prazer e, se assim o pensarmos, a própria imoralidade desempenharam o seu papel nesta série de tragédi­as, mas este papel foi menor do que o da ambição. Uma mulher, Lívia, recorria a tudo para garantir o seu poder sobre o homem que tinha nas suas mãos o destino de Roma. Para isso, estava disposta a suportar - e, mesmo, a favorecer as infidelidades e, depois, os gostos senis de Augusto52.

Pagando este preço, foi um “boa esposa” e conseguiu que Augusto, definitivamente subjugado, renegasse o seu próprio sangue. Não foi por se ter passado na casa imperial que este drama é diferente daqueles a que os romancistas de todos os tempos nos habituaram, esteja em causa a posse de um campo, de uma quinta ou do Império Romano. Um homem que se opõe durante muito tempo às intrigas insidiosas da mulher que ama, mas de quem desconfia, e depois, à medida que vai envelhecendo, a quem cede gradualmente e por quem se deixa manipular, abdica de ser ele mesmo e consente todas as traições e todos as abdicações, alimentan­do-se da ilusão de que a sua companheira, já idosa, partilha sentimentos e intenções que, na realidade, foi ela a ditar. Esta foi, sem dúvida algu­ma, a história deste casamento, que algumas cortesãs e alguns poetas celebravam como a própria imagem da perfeição conjugal.

A história das duas Júlia, a mãe e a filha, não é menos cruel nem menos dica de ensinamentos. A primeira Júlia não hesitou em organizar uma conspiração criminosa para retomar uma situação que lhe escapava e, com esse fim, concedeu os seus favores aos homens de quem esperava algum apoio. A sua filha, seguindo-lhe o exemplo (e apesar do terrível malogro de uma aventura que terminou em sangue), também acreditou poder contrariar as intrigas da toda-poderosa Lívia, recorrendo aos mes­mos meios. Que ideia do amor teriam estas duas mulheres? Somos ten­tados a pensar que, para elas, era apenas um instrumento. A pior das censuras que se poderia fazer-lhes seria, talvez, terem reduzido o amor a ser apenas isso. Se tivessem procurado, clandestinamente, apenas o pra­zer do deboche, como tantas outras do seu tempo ou em outros séculos, teriam envelhecido calmamente, honradas e, sem dúvida, felizes. Mas a tradição das mulheres romanas dizia-lhes que o amor em si mesmo é uma fraqueza, que só a grandeza e o poder merecem ser tentados. Era natural que, depois de terem chegado até ao despeito, inerente a todas as mulheres da sua raça e da sua classe, pela ligações carnais e sentimen­tais, tivessem terminado nesta mutilação do seu ser, que fora já realiza­da, em espírito, pelas matronas mais virtuosas do passado, em cuja feminidade se tinha tomado costume ver apenas o meio para assegurar a sobrevivência da cidade e a grandeza da sua gens. Reside aí, talvez, a origem profunda desta “imoralidade” de que é acusada a sociedade im­perial, uma perversão puritana dos valores naturais, que priva o amor do seu verdadeiro significado, que lhe retira o carácter essencial, que é o compromisso total de dois seres, e tenta sujeitá-lo a disciplinas arbitrári­as. Os poetas, como vimos, tinham sabido, sem dúvida, reencontrar o sentido do amor, mas ninguém os escutava, ou, como aconteceu ao infe­liz Ovídio, acusavam-nos de imoralidade e enviavam-nos para o exílio. E, no entanto, existiu marido mais terno que Ovídio e casal mais fundamentalmente pervertido do que Augusto e Lívia?

Durante os reinados que se seguiram ao de Augusto, numerosas intrigas se urdiram muito semelhantes às conduzidas por Lívia e pelas mulheres da casa imperial, intrigas fatais, motivadas pela conquista do poder e, naturalmente, utilizando os mesmos meios. Nem todas as que os historiadores nos relatam serão, talvez, verdadeiras, mas algumas, pelo menos, comprovadas com segurança, provam que a corte do Palatino não ficava nada atrás das monarquias helenísticas, continuando, ao mes­mo tempo, as tradições da vida política do fim da República. Não temos a certeza absoluta de que Caligula, para obter os serviços de Macrão, prefeito do pretório, tenha procurado os favores de Énia, a mulher des­te53, e é menos verosímil ainda que se tenha comprometido por escrito a casar-se com ela quando se tornasse imperador. Apareceram demasiado lendas sobre os imperadores júlio-claudianos para que possamos acredi­tar inteiramente em todas as histórias que se contam. Mas podemos sali­entar, apesar de tudo, o papel desempenhado por certas mulheres da “casa divina” (domus divina), que tendem a ter uma importância crescente, como disso dão testemunho as honras com que as cumulam.

Augusto sempre se recusou a unir oficialmente Lívia ao seu carácter divino e foi apenas por sua morte que recebeu o título de Augusta, mas Tibério opôs-se sempre a que recebesse outras honras e aparentava evi­tar todas as conversas com ela que pudessem levar a supor que exercia sobre ele alguma influência política54. Mas Caligula, desde o começo do seu reinado, está longe de observar tão cuidadosa reserva. Aceita (e sem dúvida sugere) que as suas três irmãs sejam incluídas nos votos oficiais pronunciados pelo Senado em sua honra e, ao mesmo tempo, faz cunhar moedas que as identificam com três divindades simbólicas com os nomes de Securitas, Concordia e Fortuna55. Quando morreu a mais amada de todas, Júlia Drusila, ordenou que fosse considerada uma deusa, com o nome de Panthea, o que era tornar oficial o culto que algumas cidades orientais lhe dedicaram, ainda em vida, e para as quais ela era a “Nova Afrodite”56. Assim, as mulheres da casa imperial foram incluídas nesta lenta ascensão para a divindade, que transforma progressivamente o prin­cipado em monarquia de direito divino. Mas não deixam também de ser “matronas”, movidas pelas mesmas paixões, prontas, para satisfazer a sua sede de honras e poder, aos mesmos comprometimentos que as suas mães, talvez ainda mais infimamente persuadidas do que elas de estarem acima das leis e da moral humanas, por pertencerem à família do deus reinante.

Dois nomes simbolizam, hoje, para nós, estas “mulheres dos Césares”, o de Messalina e o de Agripina. São dois nomes carregados de vergonha e que parecem por si só justificar a reprovação dos “amores romanos” pela história.

O editor da Galeria Universal, no momento de inserir na sua recolha uma nota sobre Messalina, julga dever tomar as suas precauções numa advertência:

"Que os nossos leitores, escreve ele, não se alarmem de modo nenhum com o nome de Messalina. O nosso respeito pelos costumes e a sábia vigilância do censor que preside à publicação dos números da Galeria Universal devem ser garantes de que o quadro assustador que apresentamos dos excessos vergonhosos desta infame imperatriz, vergonha do trono e do seu sexo, não tem por objetivo senão inspirar o horror pelo vício e fazer admirar com mais esplendor a virtude, onde quer que ela brilhe".57

Estes virtuosos protestos dissimulam mal o verdadeiro fascínio exer­cido por Messalina, em quem encarna o que se pode considerar um “amoralismo” total, uma liberdade com que se sonha secretamente, mas sem o querer confessar. Os versos de Juvenal que descrevem as proezas amorosas da imperatriz maldita estavam, há um século ou dois, na me­mória de todos - eram ditos em voz baixa nos bancos do colégio:

"Olha então para os rivais dos deuses, ouve o que Cláudio suportou. Logo que a sua mulher pressentisse que dormia, a imperatriz cortesã, ousando preferir uma esteira à cama do Palatino, pegava uma capa para a noite e escapava-se, apenas com uma serva por companheira. Depois, com uma peruca ruiva, que lhe ocultava os seus cabelos pretos, muitas vezes passou pela velha cortina, entrando em um tépido bordel e em um compartimento vazio, que era o seu. Então, nua, com os seios apoiados em uma rede de ouro, oferecia- -se, sob o nome falso de Licisca, dando como visão o ventre que te transportou, nobre Britânico. Acolhia, sedutora, os visitantes e solicitava umas moedas. Depois, à hora em que já o dono mandava sair as suas pensionistas, ia-se embora triste e tão tarde quanto podia, sendo a última a fechar o quarto, ardendo ainda em um espasmo que feria os seus sentidos. Esgotada com o homem, mas não cansada, saía e, com a tez pálida e baça, manchada pelo fumo da lâmpada, trazia para a cama sagrada o fedor do bordel".58

Os historiadores Dião Cássio e Plínio (que, por certo, se refere a si mesmo na sua História Natural) estão de acordo quando nos mostram uma Messalina freneticamente ávida de prazer carnal59. Juvenal não quis traçar, seguramente, senão um quadro simbólico, uma variação “brilhante” sobre o tema da imperatriz cortesã, em que se encontram e opõem a majestade divina do principado e as realidades sórdidas dos lupanares romanos. Não acreditemos de forma alguma que a imperatriz ocupou realmente um quarto cheio de fumo, por cima do qual uma inscrição a designava com o nome de Licisca (ou seja, com o equivalente grego do termo lupa, que, na linguagem do povo, não significava outra coisa se­ não cortesã). Que atraiu a sua casa, no próprio Palatino, amantes capazes de satisfazê-la, não podemos de modo nenhum duvidar. Que também organizou orgias no palácio para as quais convidava mulheres nobres acompanhadas dos maridos60, também é possível. Ninguém se teria in­comodado, se Messalina não fosse a imperatriz. O que pode haver de patológico na sua conduta não deveria suscitar um juízo de condenação sobre o conjunto de uma sociedade e mesmo de uma civilização que não são certamente as únicas a ter conhecido excessos deste gênero. Mas o que todos os censores esqueceram é que no momento em que Messalina se abandonava assim aos demônios da sua carne não tinha ainda vinte anos e talvez tivesse mesmo muito menos.

Messalina casou com Cláudio um ou dois anos antes deste se tornar imperador. O seu casamento data provavelmente de 39 ou 4061, altura em que Cláudio, tio do imperador reinante (Caligula), era considerado, na corte, um palhaço de quem todos podiam troçar. Ninguém pensava que, em breve, iria ser senhor do Império. Cláudio já tinha sido casado duas vezes. Divorciara-se a primeira vez por acusações que se dizem bastante leves e a segunda porque a mulher se desonrara com o seu mau comportamento e houve mesmo suspeitas de ter morto um homem62. Já não era jovem, porque, nascido em 10 a.e.c., aproximava-se então dos 50. Para Messalina, era o seu primeiro marido, e sabe-se que o costume era casar as mulheres muito jovens. Não nos enganaremos se pensarmos que em 39 Messalina mal tinha entrado na adolescência. No mês de Fevereiro de 41, dava ao mundo um rapaz, o pequeno Britânico. Talvez Britânico tivesse sido precedido por uma filha, Otávia, ou, talvez, pelo contrário, esta fosse mais nova do que ele. Os primeiros tempos deste casamento foram felizes. Cláudio gostava muito da sua mulher-criança e estava feliz por ter sido pai. Parece que tudo começou a deteriorar-se depois da morte de Caligula e da ascensão de Cláudio a imperador.

O novo imperador era extremamente influenciável e os libertos da sua casa não demoraram a exercer o poder em seu nome. Um deles, sobretudo, o famoso Narciso, parece ter feito da jovem imperatriz o ins­trumento da sua ambição. Messalina, treinada nas intermináveis intrigas da corte e cansada de um marido libidinoso, que perseguia as servas, e tão novas quanto era possível descobrir63, encontrando, para todas as fantasias, cumplicidades interesseiras e servis, teria tido o grande mérito de não abusar da sua total liberdade. Faltou-lhe uma alma de uma força excepcional e, na infância, não leve exemplos melhores do que os que lhe deu sua mãe, Domícia Lépida.

Os historiadores antigos acusam-na, não apenas de se ter entregue ao prazer de inúmeros vícios, mas também de ter provocado a morte de vários grandes personagens, de que queria vingar-se ou, simplesmente, cujos bens desejava. Debochada, cruel e cúpida, descrevem-na como um monstro quando tinha a idade em que muitas jovens pensam ainda em bonecas. Mas é muito provável que, após a sua queda, lhe tenham atri­buído todos os crimes cometidos por outros em seu redor. Narciso, no­meadamente, que após ter sido o seu aliado foi responsável pela sua morte, tinha todo o interesse em inverter os papéis, pretendendo que apenas obedecera a Messalina, quando era ele mesmo que dirigia o jogo. No tempo de Nero, o delator Suílio, que foi um dos seu familiares, teve de prestar contas. Uma das vítimas de Cláudio, Sêneca, detinha então algum poder e abriu-se o processo. Suílio quis, em primeiro lugar, proteger-se com a memória de Cláudio, pretendendo que não fizera mais do que obedecer ao imperador, defesa que Nero reduziu a nada, afirmando que nunca Cláudio provocara a menor acusação contra quem quer que fosse e que as suas memórias eram disso a prova. Então Suílio alegou que, se Cláudio estava inocente, a responsabilidade de todos os crimes era de Messalina, sabendo que ninguém tomaria a defesa da imperatriz maldita64. Devemos aceitar cegamente as afirmações de Suílio?

De fato, em redor de Messalina entrevemos como que um círculo, que não está ligado a ela apenas devido ao gosto comum pelo deboche, mas que se serve, para fins políticos, do inegável ascendente que ela exer­ce sobre o príncipe. Neste grupo figura, nomeadamente, Vitélio, o pai do futuro imperador, que finge um grande amor respeitoso65, mas, por outro lado, coloca no seu lararium estátuas de ouro dos libertos imperiais. Este círculo vinga-se de todos os que se opõem às suas manobras. Messalina está “do lado de Antônio”, a quem a ligam as suas duas linhas de ascendentes, a materna e a paterna. Desde o reinado de Augusto, uma surda rivalidade opõe este ramo da família aos “herdeiros legítimos”, represen­tados pelos descendentes de Germânico.

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Não é nada surpreendente, por conseguinte, que uma das primeiras vítimas tenha sido Júlia Livila, uma das filhas de Germânico, que, no reinado de Caligula, conspirara com Agripina contra o seu próprio irmão. Enquanto esta, que se tornara cuida­dosa, devido ao seu precedente malogro, permanecia na sombra e espera­va a sua hora, Júlia tentava seduzir Cláudio e eliminar Messalina. Entrava em longas conversas a sós com o velho imperador, que nunca não soubera resistir à atração de uma mulher. Por outro lado. Messalina acusou-a de se ter deixado seduzir por Sêneca e ter sido sua amante. Júlia foi enviada para o exílio e, dentro de pouco tempo, assassinada. Sêneca, contra quem não havia acusações demasiado graves, que, no partido das filhas de Germânico, era apenas um comparsa e de quem a eloquência e influência no Senado eram apreciadas, foi objeto de uma medida de clemência. Contentaram-se em relegá-lo para a Córsega, sem o privar dos seus bens.

O processo e a morte de Valério Asiático incluem-se no número dos crimes mais terríveis de que Messalina é acusada. É por este relato que começa, hoje, para nós, o livro XI dos Anais de Tácito:

"Vemos aí como a imperatriz, com ciúmes de Popeia Sabina, se irrita com Asiático, do qual esperava, sem dúvida, tornar-se a amante. Como se este motivo não bas­tasse, ao despeito amoroso acrescentou a cupidez. Não se contenta em desejar o homem, deseja também os seus jardins, o maravilhoso parque anteriormente desenhado por Lúculo e que se tornara uma das proprie­dades mais magníficas de Roma. Vitélio, Suílio e alguns outros encarre­garam-se de apresentar a acusação. Cláudio, segundo é relatado, ter-se-ia inclinado para a absolvição, mas Vitélio soube manobrá-lo, fingiu defender o acusado e, por fim, pediu, como medida de clemência, que se lhe permitisse escolher o tipo de morte. Cláudio concordou, estupidamente, e Messalina, que não pudera reter as lágrimas quando Asiático apresentava a sua defesa, obteve finalmente o que desejava, a morte do acusado".66

Este é o relato de Tácito, que não deixa de ser algo improvável. Asiático não era, com certeza, o personagem inofensivo que nos tenta apresentar. Tinha tomado parte ativa no assassinato de Caligula e era o chefe dos conjurados que tinham por objetivo confesso restaurar a Re­pública. Cláudio, longe de ser indulgente, persegue-o com ódio e, muito tempo após a condenação, explode em insultos à sua memória no discur­so que as tábuas claudianas nos deixaram67. Deveremos nós pensar que, deste modo, o imperador não faz mais do que seguir, cega e ridiculamen­te, uma atitude que é ditada por Messalina? A desgraça de Asiático não pode ter tido causas mais graves do que o despeito e a avidez de uma mulher impudica? Não será antes um episódio da luta constante em que se envolveram, nos reinados de todos os imperadores da dinastia júlio-claudiana, o “partido” dos libertos, as “gentes” do príncipe e os cam­peões do Senado, que desejavam arrancar o poder à influência dos “ga­binetes”? Asiático, muito bem na corte, no início do império de Cláudio, companheiro do imperador durante a expedição na Britânia, investido segunda vez como cônsul, em 46, podia passar pelo representante mais autorizado dos que, no fundo de si mesmos, estavam saudosos do bom tempo da oligarquia “republicana” e agiam para restaurar os privilégios da sua ordem. Asiático foi vítima deste duelo de morte, começado antes dele e que continuará, com peripécias diversas, no reinado de Nero e ainda depois dele. É provável que haja responsabilidade de Messalina. Confessemos, pelo menos, que ela partilha tal responsabilidade com os que, considerando que é um instrumento demasiado pouco dócil nas suas mãos, dentro em breve vão maquinar a sua perda.

Durante o Verão do ano 48, provavelmente a 15 de Agosto68, Cláu­dio, que estava a terminar o “lustro” como censor, teve no Senado este discurso genial e revolucionário, conservado pelas tábuas claudianas, tratava-se de abrir mais amplamente o Senado aos originários das pro­víncias e, muito especialmente, aos notáveis da Gália “cabeluda”. Ao mesmo tempo, Cláudio mostrava-se de uma particular benevolência em relação aos senadores: em vez de usar brutalmente os seus poderes de censor para excluir da ordem os membros do Senado que o tivessem desmerecido, deixou-lhes o cuidado de pedirem eles mesmos o direito de se retirar66. Podia parecer que se estava em um momento decisivo do Império, que o equilíbrio entre a influência dos “gabinetes” e a do Sena­do estivesse prestes a ser rompida. Esta consciência inspirou uma moção lisonjeira do cônsul Vipstano, que propôs que se nomeasse Cláudio “pai do Senado”70. Cláudio recusou esta honra, o que confirmou a opi­nião que se podia ter da sua moderação e dos seus sentimentos “republicanos”, ou, em todo o caso, favoráveis ao Senado. Tal é também a im­pressão que se retira da leitura das próprias tábuas claudianas, pela bonomia do seu estilo, sem dúvida propositada. Havia em tudo isto com que preocupar os “libertos” do palácio, que ripostaram de imediato com uma audácia inacreditável, conseguindo reverter a situação.

Os libertos aproveitaram uma nova imprudência de Messalina e, com uma hábil manobra, conseguiram tornar suspeita ao olhos do príncipe pelo menos uma parte dos senadores, eliminando ao mesmo tempo a imperatriz, que se tornava uma ameaça para eles.

Há já algum tempo, Messalina estava apaixonada por um jovem, “o mais belo dos Romanos”71, diz Tácito. Era um senador chamado C. Sílio, que concordou, para a comprazer, em quebrar o seu casamento com uma grande senhora. Júnia Silana, porque Messalina, com a intransigência da sua juventude e o seu orgulho de princesa mimada, não tolerava nenhu­ma partilha. Entregou-se a este amor sem qualquer prudência. Cláudio fechava os olhos. Talvez ignorasse a aventura, ou, o que é mais provável, tenha decidido deixar a Messalina uma liberdade de que queria ignorar até onde poderia ir. O escândalo, de qualquer forma, tinha-se tornado público: Messalina vinha a casa de Sílio com um séquito numeroso e sem se ocultar. Os seus escravos e os seus libertos estavam à vontade na casa do amante e utilizavam a louça e os tesouros do mobiliário imperial para as festas e as reuniões que ela aí dava. Sílio pressentia, de fato, o perigo, mas que podia ele fazer? Como contrariar uma amante imperio­sa, feliz com a sua existência e por satisfazer aquele que amava? Era, para a descendente de Antônio, o recomeço da “vida inimitável”, que ela revivia fazendo ao mesmo tempo de Cleópatra e de Antônio. Aliás, Sílio pensou que o próprio excesso de perigo da situação e a temeridade de Messalina tornavam possível uma solução audaciosa: uma vez que se apoderara da mulher do imperador, por que não se assenhorear também do poder? E foi ele que começou a pressionar Messalina: Cláudio estava velho, porquê esperar o fim natural dos seus dias? Não era Sílio o cônsul designado e, durante algum tempo, pelo menos, um dos principais per­sonagens do Estado? Tinha partidários que ficariam felizes se apoiassem a sua investidura quando Cláudio desaparecesse. Desde a morte de Caligula que se sabia como se faziam os imperadores. Já ninguém acre­ditava no seu direito divino. Aliás, indo mais longe, Sílio fez notar a Messalina que não tinham nenhuma relação familiar e que nada o impedia de casar com ela, logo que ficasse livre pela morte de Cláudio. Pro­metia-lhe adotar os seus filhos. A linhagem de Britânico garantiria aos olhos dos Romanos (daqueles, pelo menos, que se preocupavam com isso) que o poder não excluía completamente a descendência de Augusto.

Messalina não tinha pensado neste projeto e acolheu-o com frieza. Tácito assegura-nos que pensava apenas em satisfazer a sua paixão e também (o que não deixa de ser surpreendente, se aceitarmos o retrato tradicional de uma Messalina debochada, voando de prazer em prazer, incapaz de se prender a alguém e escrava apenas dos seus sentidos) que estes propósitos de Sílio lhe causaram preocupação quanto ao futuro da sua ligação: teve medo, diz-nos ele, que, uma vez chegado ao poder, Sílio a rejeitasse como um instrumento que se tornara inútil e acabasse, talvez, por a acusar do seu crime comum. Podemos também pensar, e Tácito não nos oferece aqui senão conjecturas, que Messalina ficou cho­cada com o espírito prático de Sílio e que não foi sem resistência que aceitou a ideia de mandar assassinar o marido. Era natural também que estivesse inquieta quanto ao amor dele, ao descobrir que Sílio podia considerá-la como o meio de satisfazer a sua ambição, em vez de sim­plesmente a amar. Do que o amante lhe disse, só quis saber de uma coisa: que desejava casar com ela. Decidiram celebrar o seu casamento na ausência de Cláudio, que tinha de se deslocar a Óstia para uma cerimônia oficial. E o casamento teve lugar. Foram cumpridos todos os ritos: observaram-se os auspícios, ofereceram-se os sacrifícios, testemu­nhas assistiram à assinatura do contrato e os esposos retiraram-se em seguida para passar a noite juntos. Tudo isto nos parece incrível. Os historiadores antigos hostis a Cláudio e a Messalina sublinharam o ca­rácter escandaloso deste casamento para evidenciar o que chamam de imbecilidade do imperador e perversidade da sua mulher. Mas alguns testemunhos dispersos permitem-nos compreender o significado da aven­tura e explicar-nos, mais ou menos, como foi ela possível. Em primeiro lugar, é Suetônio quem nos diz que Cláudio não ignorava a celebração do casamento com Sílio. Teria mesmo aposto a sua assinatura no contra­to. Mas tinham-lhe feito crer que se tratava apenas de um “casamento a fingir”, que havia presságios que ameaçavam o marido de Messalina e que, para desviar a cólera dos deuses, Sílio oferecia-se para desempe­nhar este papel72. Cláudio tinha aceito e partira para Óstia de espírito tranquilo.

Todavia, as suas ilusões não duraram muito. Narciso, um dos seus libertos, encarregou-se de as dissipar e fazer-lhe compreender a verda­deira situação. Nos nossos dias, o casamento com Sílio pode parecer uma comédia escandalosa sem alcance real. Não acontecia o mesmo no tempo de Cláudio: a mulher possuía então o direito absoluto de repudiar o marido73. Cláudio devia considerar-se “repudiado”, ainda que nem to­das as formas legais tivessem sido estritamente observadas, e foi real­mente assim que Narciso apresentou a coisa. “Mas estarás, porventura - disse ele a Cláudio -, a par do teu divórcio? O casamento de Sílio teve por testemunhas o povo, o Senado e o exército. Se não ages prontamen­te, o marido de Messalina será senhor de Roma.”74 Teria falado assim, se o casamento não tivesse nenhum valor legal? O próprio Cláudio com­preende o perigo. A imperatriz não terá entregado ao seu novo marido o Império como dote? Ela pode fazê-lo. Também ela pertence à família de Augusto. Basta que os pretorianos, o povo ou o Senado pronunciem a queda de Cláudio para que a revolução se torne um fato consumado. Teria, sem dúvida, acontecido assim se Messalina o tivesse desejado e tivesse consentido em tomar as medidas necessárias, ou deixado que Sílio as tomasse. Sílio, cônsul designado, tinha-se distinguido no ano transacto ao atacar violentamente Suílio e fazendo-se porta-voz dos “con­servadores”: os senadores tê-lo-iam apoiado, se tivesse recorrido a eles, e Narciso sabia-o, com certeza, pois, sem perder tempo, trouxe Cláudio ao acampamento dos pretorianos, estes mesmos pretorianos que tinham impedido os senadores de restabelecer a “República” e que respeitavam no príncipe o irmão de Germânico, cuja memória lhes era cara. Messalina, enquanto Narciso conspirava contra ela, preocupava-se pouco com a política: feliz por ter casado com Sílio e sem querer preocupar-se com o dia seguinte, celebrava uma bacanal, porque era 23 de Agosto, dia em que começavam as festas das vindimas75. Na casa impe­rial, preparara-se uma encenação sagrada. Viam-se prensas cheias de uva, o mosto enchia as cubas e, um pouco por toda a parte, mulheres disfarçadas de bacantes, mal cobertas com peles de pantera, entrega­vam-se às danças desenfreadas que prazem a Dioniso. A própria Messalina, com os cabelos soltos, brandia um tirso. Ela era Ariadne, ao lado de Sílio disfarçado de Baco, com as suas grinaldas de hera e os seus coturnos. Quando Vétio Valente, um dos seus amigos, subiu a uma árvo­re e fingia perscrutar o horizonte, ao perguntarem-lhe o que via lá de cima, respondeu que via “uma trovoada violenta para os lados de Óstia”76. Não se enganava nada, porque, nesse mesmo momento, Cláudio, oculto por Narciso, estava instalado em uma liteira, onde ninguém o podia abor­dar, e regressava, mais inquieto e infeliz do que furioso, para enfrentar, contra a sua vontade, o golpe de Estado que, segundo a lógica, Sílio teria devido pelo menos tentar e que tinha algumas possibilidades de sucesso.

Enquanto Messalina fora um instrumento nas mãos dos libertos, poderia ter-se criado a ilusão de que a imperatriz sabia conduzir uma intriga com habilidade e assegurar o seu sucesso. De fato, logo que, cedendo à sua paixão por Sílio, já não pôde contar com os conselhos de Narciso e dos outros, reduzida apenas às suas forças, entrou em derroca­da. Demasiado segura de si mesma, acreditou durante tempo de mais no seu poder sobre Cláudio, no que não se enganava nada, mas não imagi­nou a habilidade diabólica de Narciso, que a impediu de chegar junto daquele que não teria resistido a alguns momentos a sós com ela. Nem por um momento pensou que o liberto, arriscando tudo por tudo, daria ordem de a executar sem sequer consultar Cláudio.

Tinha-se retirado para os jardins de que tanto gostava, os que perten­ceram antes a Valério Asiático, e dispunha-se a redigir uma suplica quando chegou um grupo de soldados, conduzidos por um empregado de Narci­so. Junto dela, estava sua mãe, Lépida, durante muito tempo zangada com ela, mas que acorrera ao saber da desgraça da filha. Compreenden­do melhor do que esta que a situação era desesperada, aconselhava-lhe a que não esperasse os carrascos. Messalina, contudo, não tinha coragem para morrer: afinal, tinha apenas vinte anos e, algumas horas mais cedo, estava ainda no momento mais sublime de um amor feliz, possuída por aquele espírito dionisíaco que anteriormente, em circunstâncias seme­lhantes, tinha arrebatado Antônio e que era para si a justificação dos seus arroubos carnais. O severo Tácito condena-a em poucas palavras: “A sua alma, corrompida pelas paixões, já não conservava nenhum sen­tido da honra.” No entanto, esboçou o gesto de se matar quando se aper­cebeu dos soldados, mas estes anteciparam-se-lhe e o tribuno trespas­sou-a com a espada77.

O que se considerou ser a conspiração de Messalina, e que havia sido, sobretudo, a conspiração de Sílio, foi reprimida, como era hábito, com uma série de execuções. A severidade das condenações mostra que se pretendeu destruir os representantes mais ativos do “partido senato­rial”. Narciso levava a melhor. Já não estava em questão a aproximação entre o imperador e os senadores. Por uma última vez, os libertos tinham-se servido de Messalina para conduzir o seu jogo e os senadores rebaixaram-se até ao ponto de oferecer a Narciso as insígnias de questor, consagrando assim a sua própria derrota.

É nestas condições que Agripina chega ao poder. Era necessário subs­tituir Messalina a qualquer preço. Cláudio não podia passar sem mulher e, oferecendo-lhe uma a seu jeito, cada grupo procurava assegurar este modo de o influenciar. Acerca do quarto do príncipe, houve inúmeras intrigas, cujos ecos enfraquecidos Tácito registrou. Finalmente, chegou-se a acordo sobre o nome de Agripina, que dava garantias a todos. Agripina foi escolhida porque tinha sangue de Augusto: era filha de Germânico. Os libertos sabiam que era permeável à corrupção. Em suma, cada um esperava ser recompensado por este casamento, casamento escandaloso, pois Cláudio era o tio de Agripina, mas que se conseguiu impor à opinião pública com uma lei especialmente promulgada para autorizar estas uniões até então consideradas incestuosas.

No entanto, os que esperavam que Agripina fosse tão dócil como ha­via sido Messalina cedo se desenganaram. De fato, foi uma segunda Lívia que chegou ao poder e não tinha, para se lhe opor, a vontade de um homem semelhante a Augusto. Muito rapidamente, dispôs-se a seguir uma políti­ca pessoal. Abandonando os libertos, começa a seduzir o partido senato­rial. Chama Sêneca, confia-lhe o encargo de criar o jovem Nero e deixa entender que, quando chegasse o dia, saberia dar ao Império um príncipe mais respeitoso dos privilégios do Senado. Levou cinco anos para arruinar completamente a autoridade de Cláudio e ter do seu lado um partido. De qualquer modo, não teve, no fim de contas, nenhuma dificuldade em im­por Nero quando a morte de Cláudio - de que, não sem plausibilidade, a acusam de ter provocado - abriu as portas à sucessão. A sua previdência e a sua habilidade tinham afastado todas as dificuldades: pretorianos, sena­dores e plebe, todos aprovaram a ascensão de Nero à chefia do Império. Tinha sabido realizar o que os três reinados precedentes não tinham conse­guido senão muito raramente: a unanimidade política em Roma.

Após o sucesso obtido contra o marido, tem de manter a sua influên­cia, desta vez sobre o filho e, antes de mais, sobre o próprio círculo que a ajudara na primeira parte da sua tarefa. Os homens com que rodeou o jovem Nero vão, pela primeira vez, pô-la em xeque. Tinha querido apoiar-se nos “conservadores” e Sêneca fora-lhe para isso muito útil. Mas ti­nha suscitado assim, sem o saber, um obstáculo insuperável. Nunca um “velho romano” permitiria a uma mulher exercer uma influência osten­siva sobre a vida política e os negócios do Estado. Ora, ela recusa per­manecer na sombra. Tem a ambição de todas as mulheres da sua estirpe, o sangue de Lívia corre-lhe nas veias, mas já não tem a sua prudência. Sabe que é capaz de levar a bom termo os mais importantes assuntos tão bem ou melhor do que um homem. Quer ser mais do que a mãe do príncipe, quer ser uma verdadeira rainha. Ora, se a tradição romana permite às mulheres, há muito tempo, ter peso nas decisões dos homens, esta tradição, que os homens em que Agripina se apoia representam, proíbe-lhes que apareçam em cena.

O drama desencadeia-se desde os primeiros tempos do reinado de Nero: um dia em que embaixadores vindos da Armênia eram recebidos em audi­ência oficiai pelo imperador, Agripina dispunha-se a subir para o estrado e a sentar-se junto dele. Todos os presentes ficaram estupefados. Agripina aproximava-se da tribuna e ninguém ousava fazer um gesto para a impe­dir. Eis que Sêneca teve a presença de espírito de sugerir a Nero que o seu dever lhe impunha que fosse à frente da sua mãe. A sessão foi suspensa, o escândalo evitado, mas o incidente foi o prelúdio de uma longa crise78. Agripina compreendeu que estava longe de ter definitivamente ganho e que tinha de continuar a luta. Agora, era um filho que era necessário domi­nar, não um velho que se vence com uma carícia.

Agripina vai continuar, durante quatro anos, este combate desigual, onde se usam, de ambos os lados, todas as armas. Nero ousa apaixonar-se por uma liberta de nome Acte. É, em si mesmo, um assunto sem consequências, mas Sêneca vê nele um meio para afastar da sua mãe o jovem príncipe. Favorece esta ligação. Um dos seus amigos, Sereno, o prefeito dos vigias noturnos, esforça-se, desde logo, por dissimular o escândalo, tomando a seu cargo os presentes que o jovem oferece à sua amante e exibindo-se com ela. Mas Agripina não é tola e enfurece-se. Então, privam-na de um dos seus aliados, o liberto Palas, um dos “gran­des funcionários” sobreviventes do reinado precedente, que favorecera a sua fortuna. Então ameaça. Britânico, o filho de Cláudio e Messalina, continua ali, como um remorso. Agripina sabe que pode sublevar os pretorianos a seu favor, diz ela. Britânico morre tão a propósito que nin­guém duvida de que Nero o mandara assassinar (o que de modo algum é certo). Em seguida, a própria Agripina é afastada do Palatino. Mas nem assim ela desarma. Há mesmo quem assegure que ela pensa tornar-se amante do seu próprio filho, crime que foi evitado, diz-se, por interven­ção de Sêneca79. Nero foi protegido também pelo seu amor por Popeia, que arrebatara a um dos seus amigos, Sálvio Otão, e com quem acabou por casar. Por fim, foi a influência de Popeia que o levou a cometer outro crime: o assassinato da sua própria mãe.

Com Agripina e Nero termina uma linhagem. A família imperial procedente de Augusto tinha levado ao paroxismo estes dramas da pai­xão e da política, que não eram, certamente, novos em Roma, mas não tinham conhecido ainda uma tal intensidade nem uma tal continuidade.

Os historiadores transmitiram-nos muitos detalhes sobre a perversidade sexual do último dos júlio-claudianos, que nos permitem supor que ce­dia com demasiada boa vontade aos arrebatamentos da sua imaginação e às curiosidades dos seus sentidos. Os mesmos historiadores relatam-nos também com que ternura gostou de Popeia, com que alegria acolheu o nascimento da sua filha, o único descendente que teve. Acrescentam que Popeia morreu por culpa do imperador, que ele lhe deu um dia um tal pontapé no ventre que a jovem, que estava grávida, não demorou a mor­rer. O que retira muito peso a esta versão é o rumor que correu entre o povo que Popeia morreu envenenada por Nero. O que é certo é que este continuou a amar a memória da sua mulher, a ponto de a “substituir” por um rapaz cujos traços recordavam os da morta. Também não devemos esquecer, para concluir o esboço do que foi, talvez, o verdadeiro perfil de Nero, o imperador que começou reinar aos dezessete anos, que a sua primeira amante, Acte, lhe permaneceu sempre fiel e que foi ela que o enterrou, quando todos o tinham abandonado, tendo morrido proscrito, declarado inimigo público pelo Senado, arrastando consigo a sorte de toda uma dinastia.

 

Fonte: http://www.templodeapolo.net