VERDADES INCONVENIENTES

Máfia lucra com golpe do seguro obrigatório

funeraria231/10/2011 - Funerárias e advogados aproveitam momento de dor de parentes para intermediar liberação do Dpvat, pago quando há morte no trânsito. Há casos em que ficam com todo o dinheiro. Entre pessoas que se movem enfaixadas, amparadas por outras que as ajudam a entrar no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, no Bairro Santa Efigênia, Região Leste de Belo Horizonte, há quem busca apenas respirar um pouco fora da instituição para tentar aliviar a dor de ter perdido um parente ou amigo. Se em meio a essa tristeza alguém mencionar que a morte se deu por acidente de trânsito, vai descobrir que não está sozinha. Espreitando potenciais clientes, logo aparecem representantes de empresas especializadas em lucrar com a liberação ...

do seguro de danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, o Dpvat. Como agentes funerários infiltrados em hospitais e as funerárias que desviam corpos do Instituto Médico Legal (IML), essa ação de atravessadores é mais um lado da indústria macabra que lucra com a morte, como mostra desde ontem o Estado de Minas.

O lucro com a liberação do seguro é alto. Qualquer pessoa que se acidenta no trânsito, seja vítima ou causador, tem direito ao seguro. No caso de morte, o valor do prêmio é de R$ 13,5 mil. É aí que agem os atravessadores dos escritórios de advocacia, associados a instituições financeiras e funerárias. Quando encontram parentes pobres e desesperados, com dificuldades para arcar com as despesas, eles oferecem adiantamentos. A simples contratação desses serviços, porém, resulta no comprometimento por contrato de 20% a 30% do valor bruto do seguro, ou seja, de R$ 2.700 a R$ 4.050. Isso, sem contar com os custos das funerárias associadas a esses serviços. No fim das contas, depois do prazo de 30 a 40 dias para que o Dpvat seja liberado, o beneficiário da vítima se vê com pouco ou nenhum dinheiro.

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Poucas pessoas lesadas acionam na Justiça escritórios que atuam com o Dpvat. Dos nove processos que tramitam no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em apenas um houve condenação por apropriação indébita. O caso foi julgado em 2003 e se refere a um intermediário, representante de uma funerária da cidade de Monte Carmelo, na Região do Alto Paranaíba. Dos R$ 6.754 do prêmio do seguro, o agente funerário descontou R$ 2.604 pelo velório e enterro e devolveu apenas R$ 2.100, tendo embolsado R$ 2.050. Além de devolver essa quantia, a Justiça condenou o réu à prestação de serviços sociais.

Nos demais casos, os agentes foram absolvidos. De acordo com a Seguradora Líder, que administra o Dpvat, não é ilegal intermediar a liberação do seguro, ainda que se insista para que as pessoas não façam isso por meio de terceiros, já que as próprias vítimas e seus beneficiários podem receber o prêmio sem custos de operação. Alguns especialistas, no entanto, consideram que beneficiários do seguro podem pedir anulação desses contratos na Justiça nos casos em que a empresa se aproveita de um momento de desorientação das famílias.

Os escritórios fazem mais do que apenas prover os processos de movimentação. A reportagem apurou que eles incluem em seus custos o pagamento a pessoas que trabalham ou têm acesso às informações sobre os óbitos, reduzir o tempo de reunião de documentos, e até ao relatório policial que descreve as circunstâncias dos acidentes.

“Ajuda”
Na porta de entrada de visitas do HPS, o EM constatou que atravessadores abordam rapidamente quem chora a morte de um familiar no trânsito. Menos de um minuto depois de a reportagem simular a perda de um parente, uma mulher se aproximou com um panfleto e um cartão na mão. Os dois papéis propagandeiam que quem sofre acidentes pode receber o seguro Dpvat. “Sou de um escritório de advocacia no Centro. A gente ajuda vocês a liberarem o seguro. Para mortes o valor é de R$ 13.500”, disse.


Quando perguntada se poderia ajudar com o funeral, a agente do escritório usou o telefone celular para consultar a empresa. “Eles podem adiantar o dinheiro. Mas vão lá para conversar com eles”. O prédio do escritório funciona na Rua Tamoios. O próprio porteiro já sabe do que se trata, tamanho o volume de clientes. “É o escritório do Dpvat, não é? 19º andar”, indica.

O escritório ocupa o andar inteiro do edifício, com secretárias, pastas com processos sobre as mesas e movimento razoável de clientes. Uma advogada e um homem que se identificou como gerente da empresa descrevem o serviço numa sala ampla, depois de servirem café e água. “Fazemos uma consultoria. No caso do Dpvat, toda pessoa que se envolve em acidente tem direito, ou os seus beneficiários. Cobramos uma comissão de 30% do valor”, disse o gerente.

Enquanto eles negociam, outro funcionário anota os dados do morto, como o nome dos pais e o local do óbito, para conferir no hospital e na polícia. Com essas informações, os advogados optam pelo caminho a seguir no processo, podendo incluir até pedidos de indenização contra empresas de ônibus e órgãos públicos envolvidos, por uma comissão ainda a ser acertada.

Em meio a dúvidas sobre o funeral do parente fictício, o gerente revela que o escritório é uma filial de uma empresa que tem os mesmos serviços no Rio de Janeiro. “Vamos adiantar para vocês o dinheiro. Vocês podem fazer o funeral e tudo mais com tranquilidade e a gente desconta do valor do Dpvat. Só não consigo esse dinheiro hoje, porque já está tarde e o recurso vem do escritório central, no Rio”, afirma o advogado. A assessoria de imprensa da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) informou que não tem conhecimento desses casos de abordagens para oferecimento de liberação do seguro Dpvat que ocorrem fora do hospital.

Palavra de especialista
Negociação pode ser anulada

DIAMANTINO SILVA FILHO - advogado, ESPECIALISTA EM DIREITO PÚBLICO

Os contratos para intermediação do Dpvat feitos em circunstâncias estranhas, e que incluem comissão, podem ser considerados ilegais. O serviço é captado numa situação em que a pessoa não está raciocinando direito e os papéis são assinados num momento de extrema desorientação das famílias. Escritórios tiram proveito dessa situação e as vítimas que se considerarem lesadas devem entrar com ações judiciais pedindo a anulação desses contratos.

dpvat

Escritório avisa sobre morte

 

A notícia do atropelamento do pai da psicóloga Cláudia Costa Moreira, de 33 anos, não foi dada por um parente próximo, uma testemunha do acidente ou pelo serviço médico de urgência. Foi um representante de um escritório de advocacia especializado em indenizações por acidentes de trânsito quem procurou a família da moça em casa para informá-los do fato como também indicar o serviço de requerimento do seguro Dpvat. Como estavam sem condições financeiras para pagar o funeral, a empresa ofereceu um adiantamento à família para custear o velório e o enterro, mas eles optaram por um pagamento parcelado com cheques. Mas, frágil pelo momento de luto, a moça então assinou vários papéis e delegou aos advogados a autorização para receber o valor do seguro para vítimas de acidente de trânsito. A ‘boa ação’ da empresa, no entanto, teve preço e custou à família 30% do valor da indenização de R$ 13,5 mil.

O acidente ocorreu em 2007. Quando atravessava o cruzamento da Rua da Bahia com Avenida Augusto de Lima, no Centro de Belo Horizonte, o pai de Cláudia foi atingido por um ônibus. “Não faço ideia de como o advogado ficou sabendo da morte dele, mas o fato é que vieram aqui em casa, me levaram ao IML e ao cartório no carro deles e providenciaram a documentação”, conta.

Em cerca de 30 dias o dinheiro foi liberado. Foi quando Cláudia foi chamada no escritório para receber os 70% restantes do dinheiro. “Eles mesmos sacaram o dinheiro e me deram a nossa parte por meio de um cheque. Nem sei se nos pagaram o valor correto”, desconfia. A psicóloga afirma que no momento em que foram abordados não sentiram que o advogado foi invasivo por causa da situação. “Se fosse hoje, daria entrada no seguro com meu advogado, porque a taxa é abusiva”.

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Famílias relatam abusos na abordagem de funerárias e estranham rapidez no contato de empresas


30/10/2011 - "Alguém passa nosso telefone", diz parente. O encontro com o lado mais macabro da indústria dos funerais não sairá tão cedo da lembrança do ourives Alexandre Antônio da Silva, de 32 anos. “Uma gente mal-encarada e perigosa”, define. Ele queria ajudar a família da esposa a enterrar a sua sogra, Elizete Silva Santos, de 56. A senhora morreu em casa, no meio da madrugada, na última quinta-feira. “Tentei chamar o rabecão, mas ninguém atendeu. Decidimos ir ao Instituto Médico Legal (IML)”, lembra. Lá, ele teve a primeira visão de homens que tentam controlar enterros e velórios. “Tinha um cara vestido de bombeiro dentro do IML. Ele nos abordou querendo nos convencer a usar os serviços de uma funerária”, afirma.

O procedimento padrão seria chamar o rabecão e esperar que o corpo passasse pela medicina legal, onde se determina a causa da morte para apurar eventuais crimes. Para evitar isso e tentar faturar mais, o suposto bombeiro iniciou uma pressão psicológica sobre as filhas da falecida. “Falou que iam cortar o corpo da minha sogra todo no IML. Que iam acabar com ela. Por isso era melhor levar para a funerária, onde havia médicos para fazer o atestado de óbito”, lembra Alexandre.

Na funerária, outra figura surgiu, vestindo um jaleco sujo e manchado, com os braços, o pescoço e os dedos cobertos por joias de ouro. Era o médico que faria o atendimento. “Parecia um mafioso ou bicheiro mesmo. Chegou de dentro da funerária e disse que estava fazendo um favor para a gente. Uma ação beneficente. Deu uma carimbada e assinou o atestado de óbito”, lembra. Porém, Alexandre tem certeza que a recompensa do médico seria paga pela funerária. “Cobraram muito mais caro. Só que, no estado em que a gente estava, no meio daquela gente, assinava qualquer coisa”. O custo do enterro na mesma funerária é R$ 1.350, mas a família acabou pagando R$ 1.900.

Revolta

O sofrimento de ter perdido o irmão bloqueou o raciocínio da dona de casa Maria Ângela Expedito, de 60. Ainda triste, ela só descobriu que o atestado de óbito estava dentro de uma funerária quando já tinha pago um valor muito acima do de mercado pelo caixão, coroa de flores e ornamentações. Passada a dor, veio a revolta. “Minha mãe ficou revoltada com os abusos que os agentes fizeram ela p*assar. Foi muita demora, ameaças de que o corpo ia ficar deformado antes que outra funerária chegasse. Por isso ela resolveu pagar um plano funerário”, conta o filho dela, o vendedor Adilson Ângelo Expedito, de 32 anos. Não adiantou. Nesta quinta-feira, dona Maria Ângela morreu na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Centro-Sul. Mesmo com todos os parentes sabendo sobre a cobertura para o enterro, eles ainda receberam vários telefonemas com ofertas de funerárias.

“Só pode ser algum funcionário da UPA que avisou a essas funerárias. Meu pai ficou revoltado. Brigou com eles no telefone”, protesta outro filho de Maria Ângela, o vigilante Ezequiel Expedito, de 29. De acordo com os dois irmãos, a mãe faleceu por volta das 10h. “Fomos para casa para avisar os parentes. Lá pelas 14h as funerárias começaram a telefonar. Foram umas três diferentes. Com certeza alguém ganhou algum (dinheiro) para passar o telefone da gente e o nome dela”, afirma Ezequiel.

Todos os níveis sociais estão sujeitos os esquemas de funerárias instaladas em hospitais para lucrar com a dor. No caso da morte de Maria Madalena da Silva, 86, o neto dela diz que o próprio médico do Hospital Lifecenter orientou sobre o procedimento. “Ele nos disse que devíamos ir ao subsolo para liberar o corpo. A pessoa que nos atendeu começou a falar de enterro, queria mostrar um álbum com os caixões. Foi quando desconfiamos de que se tratava de uma espécie de venda casada e recusamos tudo”, disse o advogado Guilherme Ferreira e Oliveira, de 27, um dos netos. “Na hora, estava muito triste. Depois, fiquei com essa afronta na garganta. Estou aliviado em denunciar esse esquema”, desabafou.

O PAPEL DE CADA UM

Agentes funerários de apoio

São contratados das funerárias que ficam dentro dos hospitais públicos e particulares. Para enganar suas vítimas, se fingem de assistentes sociais para que as pessoas pensem que são empregados de um serviço do hospital.

Médicos e enfermeiros

Alguns profissionais entregam a relação de óbitos diretamente para o ponto de apoio das funerárias. Depois, apenas encaminham os familiares para lá, sem dizer que se trata de um serviço privado e opcional.

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Policiais do rabecão

De acordo com as denúncias, há policiais recebendo porcentagem e até salário de funerárias sobre cada morto que deixam de entregar no Instituto Médico Legal. Eles levam os corpos para dentro das funerárias.

Funcionários na porta do IML

Povoam os arredores e a porta do Instituto Médico Legal. São responsáveis por convencer pessoas que chegam para liberar corpos de parentes ou reconhecê-los a utilizar os serviços de suas empresas.


Fonte: http://www.em.com.br