RELIGIÃO, CULTOS E OUTROS

A Magia Negra de São Cipriano: Dos Rituais Proibidos às Lendas Sombrias

saocipri1"Quanto a todos vocês, é possível que, quando alguém menciona o Livro de São Cipriano, venha à mente algo misterioso e intrigante. Em algumas ocasiões, até mesmo uma sensação de suspense e mistério, mas não vamos exagerar. Para aqueles de nós que se encontram na faixa etária de 40 a 50 anos, talvez estejam familiarizados com este livro. Quando éramos crianças, São Cipriano era frequentemente relacionado a uma aura de mistério e fascínio. Para aqueles que não vivenciaram essa época ou não têm conhecimento do que estou descrevendo, o Livro de São Cipriano era uma espécie de manual de práticas mágicas, um verdadeiro tomo de conhecimento que supostamente reunia uma variedade de rituais, encantamentos e feitiços que abrangiam desde atrair o amor até encontrar tesouros ocultos, ou até mesmo se livrar de inimigos e adversários. Entre essas práticas, estava o famoso ritual para criar um 'espírito em uma garrafa'. Mencionando a 'Oração da Cabra Negra', era algo que frequentemente causava apreensão.

Naquela época, o livro era disponibilizado para venda pelo correio, uma era em que a internet ainda era um conceito distante. Para obter uma cópia, era necessário recortar um cupom de determinadas revistas, enviá-lo juntamente com o pagamento do livro e as despesas de envio para um endereço designado, e então aguardar entre 6 e 8 semanas até que o volume fosse entregue (ou não) na sua residência. Uma lenda urbana sugeria que o livro precisava ser presenteado por alguém já iniciado no conhecimento, caso contrário, os rituais e encantamentos não teriam efeito. Além disso, o Livro de São Cipriano podia ser encontrado em algumas lojas que vendiam uma variedade de produtos místicos, como velas, imagens de santos e itens similares. Se você fosse a uma dessas lojas e procurasse com atenção, poderia encontrá-lo na vitrine ou em uma prateleira.

Se minha memória não me falha, havia duas versões deste livro, cada uma reivindicando ser a mais autêntica e confiável. Uma delas era conhecida como o 'Livro de São Cipriano de Capa Preta', enquanto a outra era a famosa 'Capa de Aço' (assim chamada devido à sua capa metalizada que não era muito resistente). Ambas prometiam proporcionar soluções mágicas para uma variedade de problemas.

Em uma época mais inocente, onde esses tópicos eram discutidos em sussurros entre crianças, os livros eram considerados extremamente proibidos. Sempre havia alguém no grupo que tinha um parente, tio ou avô, que guardava o Livro de São Cipriano em segredo. Isso se devia a outra crença que afirmava que o livro só poderia ser manuseado e lido por seu proprietário original. Lembro-me de ser uma criança quando ouvi falar do Livro de São Cipriano pela primeira vez, e fiquei impressionado com a aura de mistério que o cercava. Era dito que simplesmente tocar no livro podia ser arriscado, e o melhor a fazer era evitá-lo. E quanto a outra lenda urbana, havia rumores de que o 'Capa de Aço' podia cortar os dedos de quem o lesse e absorver o sangue derramado sobre ele. Acreditava-se que, se tal coisa acontecesse, a pessoa estaria em perigo..."

Como pode-se ver, não faltavam boatos, rumores e exageros sobre esse Livro Maldito, quase um Necronomicon do mundo real. Mas afinal de contas, do que trata o infame Livro de São Cipriano? Qual o seu conteúdo? De onde veio a sua fama de livro perigoso? E mais importante, existe alguma base histórica para as histórias que o cercam? Eu pesquisei a respeito e encontrei algumas coisas interessantes a respeito dele.

Para começo de conversa, sim, São Cipriano de fato existiu. Para ser totalmente justo, existiram dois santos com esse mesmo nome, o que cria certo grau de confusão já que viveram quase na mesma época: São Cipriano de Cartago, o mais conhecido é um dos Patriarcas da Igreja Católica e figura muitíssimo estudada por teólogos e filósofos. Já São Cipriano de Antióquia (uma importante região que hoje fica no Norte da Turquia) é conhecido por outras façanhas. Os Ciprianos são quase contemporâneos, enquanto o primeiro viveu no século III, seu xará andou pela Antióquia do século IV. Mas embora ambos sejam santos reconhecidos pela Igreja Católica, o segundo tem uma história colorida, para dizer o mínimo. Cabe saber que ele é tido como um dos mais poderosos Magos Ancestrais. Salomão é considerado como o mago judeu mais famoso, enquanto São Cipriano é sua contraparte cristã.

Como ocorre com figuras históricas antigas, a vida dele é uma mistura considerável de realidade com lenda e ficção. Não faltam histórias escritas em livros, inseridas em tradições cristãs ocidentais e orientais, como o Flos Sanctorum, um dos primeiros compêndios sobre a vida dos Santos e Mártires. Na Península Ibérica existem várias tradições sobre ele, já que vem de lá a maioria dos registros do passado e mais contemporâneos. Há documentos do século XII que se referem à trágica história e ao martírio de Cipriano e sua amada Justina. A história aliás é bastante peculiar e dá ensejo a uma série de questionamentos, levantando dúvidas sobre o caráter farsesco da narrativa.

Segundo a lenda, Cipriano nasceu nos arredores da cidade de Antioquia, na Turquia. Desde muito cedo, teve contato com as ciências ocultas, estudando alquimia, astrologia e diversas modalidades de magia ritualística. O interesse de Cipriano pelo mundo sobrenatural o impulsionou a uma longa viagem pelo Egito e Arábia, onde aprendeu muito a respeito de tradições místicas. Retornando de sua jornada ele se estabeleceu em sua cidade natal, onde passou a ser respeitado e temido como bruxo. Em certa ocasião, Cipriano foi contratado para lançar um feitiço sobre uma dama chamada Justina que havia se convertido a fé católica. O bruxo utilizou de todos os recursos que conhecia para afetar a jovem, contudo nenhum de seus malefícios surtiu efeito. Acreditando que Justina era defendida por uma força superior, Cipriano procurou saber mais sobre os cristãos. Em algum momento, graças à própria Justina que o perdoou por tentar lhe fazer mal, ele se converteu, renegando seu passado como feiticeiro.

A notícia sobre a conversão de Cipriano chegou ao conhecimento do Imperador Diocleciano, um forte oponente do cristianismo. Ele decretou a prisão do bruxo convertido e de Justina e ordenou que comparecessem diante dele. Ambos foram instruídos a renunciar à sua fé e sujeitos a torturas intensas na tentativa de fazê-los abandonar suas crenças. Os dois foram submersos em um caldeirão contendo cera quente, mas conseguiram suportar os tormentos graças à sua fé inabalável. Enfurecido com a determinação dos prisioneiros, o Imperador ordenou que fossem decapitados. Seus corpos permaneceram expostos por seis dias, até que um grupo de cristãos conseguiu recuperar os restos mortais e levá-los a Roma. Ao chegarem lá, descobriram que os corpos estavam em perfeito estado, e as cabeças haviam sido miraculosamente reunidas aos corpos. Esse acontecimento foi considerado um milagre e resultou na imediata canonização de Cipriano e Justina. Atualmente, seus restos mortais repousam na Basílica de São João de Latrão em Roma.

saocipri2

Conforme a Doutrina Católica, é atribuída a São Cipriano a autoria de um suposto Livro de Magia, destinado a combater diversos tipos de feitiçaria, encantamentos e inveja. Este livro alcançou grande notoriedade nos primeiros séculos do cristianismo. Contudo, existe uma variedade de escritos atribuídos a São Cipriano, incluindo Grimórios que abordam ensinamentos místicos e fornecem instruções sobre a busca de tesouros ocultos, o uso de magia negra, sabedoria profana e demonologia. Alega-se que esses tratados foram compostos antes da conversão de São Cipriano, quando ele se dedicava às artes mágicas. Tais obras são mencionadas em registros dos Tribunais da Santa Inquisição e em processos judiciais, sendo consideradas materiais blasfemos.

Durante a Baixa Idade Média, a posse de tais documentos podia resultar em investigações oficiais da Inquisição, levando a diversas consequências, incluindo execuções. Um exemplo disso é o processo movido contra Juan de Toledo em 1610, que possuía um Livro de São Cipriano e supostamente o utilizou para encontrar tesouros ocultos por meio de práticas mágicas. Outro caso é o de Juan Rodríguez, Presbítero del Ferrol, na Galícia espanhola, que enfrentou um processo em 1702 sob acusação de utilizar o "Livro de San Cipriano" para localizar tesouros e riquezas por meio de poderes mágicos.

Lamentavelmente, os exemplares mencionados nos julgamentos não foram preservados nos arquivos inquisitoriais. Vários fatores explicam a ausência de cópias sobreviventes. A influência duradoura da Inquisição espanhola resultou na censura, apreensão e destruição de muitos desses livros. Além disso, devido ao valor atribuído a eles, esses textos frequentemente desapareciam em coleções particulares ou eram confiscados ao longo do século XX, especialmente durante a Guerra Civil Espanhola e a ditadura de Franco, quando inúmeros volumes raros e inestimáveis foram queimados. O clima úmido e chuvoso da região galega da Espanha também prejudicou a conservação de livros antigos.

Outro fator que contribui para a falta de exemplares sobreviventes é a imigração de pessoas que possuíam esses livros para a América, evitando problemas com a Inquisição. Os livros mais antigos conhecidos relacionados à obra de São Cipriano datam do início do século XVIII. Alguns deles, como "HEPTAMERON OU ELEMENTOS MÁGICOS COMPOSTOS POR SAN CIPRIANO O MAGO," traduzido do Latim e com anotações em espanhol, tratavam de quiromancia, fisionomia, astrologia e feitiçaria. Eles geralmente incorporavam práticas mágicas variadas.

No século XIX, os Livros de São Cipriano chegaram à América espanhola, especificamente ao México, Peru e Argentina. Eles foram editados pela primeira vez em 1856 no México e ganharam popularidade devido às promessas de riquezas e tesouros, mais uma vez sendo considerados "verdadeiros e completos" em relação ao original.

No Brasil, os primeiros volumes provavelmente foram trazidos por nobres e pessoas abastadas. A primeira edição brasileira registrada é de 1895, no Rio de Janeiro, mas nenhuma cópia sobreviveu. A edição de 1900 em São Paulo já trazia o título "O Verdadeiro Livro de São Cypriano, o Mago" na capa. A primeira edição impressa em tiragem foi lançada em 1923, intitulada "Grande Livro de S. Cipriano ou Thesouro do Feiticeiro," com cerca de 300 páginas. Esse livro obteve um grande sucesso de vendas, resultando em várias edições subsequentes, incluindo uma versão mais curta para públicos menos afluentes.

A partir da década de 1960, os livros brasileiros de São Cipriano adotaram um tom mais sinistro, incluindo rituais para a comunicação com os mortos, invocação de demônios e práticas envolvendo o sacrifício de animais. Eles abraçaram tanto a magia branca quanto a negra, frequentemente apresentando elementos do espiritismo e influências das religiões africanas. Também passaram a incluir receitas para curar doenças tropicais, tratar o veneno de animais peçonhentos e oferecer proteção contra o mal, juntamente com práticas como cartomancia, astrologia e quiromancia.

Nos anos 1970, os livros de São Cipriano no Brasil ganharam adições de rituais e magias para convocar os mortos e compelir entidades sobrenaturais, muitas vezes envolvendo o sacrifício de animais. Essas edições trouxeram uma mistura de magia branca e negra, ampliando ainda mais o escopo dessas obras. No Brasil, o Livro de São Cipriano continuou a ser vendido e atrair interesse ao longo do tempo.

saocipri3

Certamente, os livros passaram a incorporar uma variedade de concepções confusas de qualidade questionável, visando mais impactar e intrigar o leitor casual do que fornecer um tratado de misticismo ou ocultismo convencional. Em outras palavras, as obras associadas a São Cipriano se converteram em uma miscelânea de ideias, princípios e superstições diversas, retiradas de diversas fontes imagináveis e disponíveis. Isso justifica o motivo pelo qual alguns exemplares passaram a ostentar capas com representações de Exu, crânios, tridentes e outros símbolos vinculados a crenças africanas. Se em um passado remoto essas publicações apresentavam um aspecto histórico, esse traço se esmaeceu de tal maneira que praticamente nada remanesce do suposto Manual de Magia associado a Cipriano de Antióquia. No fim das contas, o Livro de São Cipriano é, antes de tudo, uma amalgama de conceitos diversos.

Para concluir essa narrativa, não posso deixar de compartilhar minha experiência ao adquirir um exemplar do Livro de São Cipriano. Tinha cerca de 17 anos na ocasião e encontrei o livro à venda em uma feira de livros usados. Não resisti à tentação e o levei para casa. Durante a madrugada, sem ninguém por perto, desvendei o conteúdo do "livro proibido". Fui confrontado com uma grande decepção ao folhear as páginas e me deparar com conteúdos de qualidade duvidosa em uma edição de baixo custo.

Foi inevitável soltar uma risada e refletir internamente: "Será disso que eu tinha tanto receio quando era criança?"

Acredito que ainda guarde uma cópia do infame "Capa Preta" em algum lugar aqui em casa, embora não o tenha consultado por anos. E, antes que alguém pergunte, é importante esclarecer que jamais cogitei praticar qualquer uma dessas * aham * "magias". O livro permanece como uma mera curiosidade e um notável exemplo da disparidade entre as expectativas e a realidade.

REFERENCIAS: REDEVAMPYRICA

                        MUNDO TENTACULAR

                        ACADEMIA.EDU