VERDADES INCONVENIENTES

A TV Antieducativa-Parte 1

tv 1 Valdemar topo 1Por Valdemar W. Setzer. Original: 23/1/09; esta versão: 5.0 de 15/8/09 - 1. Introdução: O título deste artigo foi o sugerido pelos organizadores da Semana de Licenciatura de 2008 de meu Instituto para uma palestra que dei nesse evento. Reconhecendo que eu não tinha nenhum artigo dedicado especificamente aos problemas gerais da televisão – há em meu site alguns específicos, como por exemplo Setzer (2000), especialmente em relação aos efeitos negativos dela em crianças e adolescentes, resolvi basear-me na apresentação que fiz naquela palestra para escrever o presente trabalho.  As forças que estão por trás da tecnologia são infinitamente inteligentes, mas não tem um pingo de bom senso.

Com isso, sempre exageram, e pessoas que antes não percebiam os problemas que ela produz passam a notá-los. Esse é o caso da TV. Nas décadas de 1960 e 70, quando meus filhos eram crianças ou adolescentes, eu e minha esposa éramos considerados "bichos papões", devido à nossa posição contra esse aparelho, principalmente quanto ao mal que ele causa em crianças e adolescentes. Por isso, nem o tínhamos em casa, eliminando assim pela raiz o que considerávamos um mal infinitamente maior do que qualquer bem que pudesse trazer para nossos 4 filhos. Quando nossos filhos iam visitar amiguinhos, ficávamos angustiados com a perspectiva de que fossem ficar bestificados algum tempo na frente da TV. Mas ficávamos quietos, pois sabíamos que não seríamos compreendidos. Hoje em dia, os mencionados exagero e falta de bom senso levou a TV a tal nível de grosseria e de baixaria, que muitas pessoas começam a reconhecer o mal que ela faz em crianças e adolescentes. Este artigo tem a intenção de mostrar esse mal. Aos pais e professores que desconfiam ou já tem uma certeza intuitiva do mal que ele faz, espero dar argumentos para que consolidem sua opinião, e ajam contra ele com a segurança de que estão no caminho correto. Quero também incentivá-los a ter coragem e a posicionar-se contra ele, em seus lares, com seus alunos e os respectivos pais, e mesmo publicamente.

 

ampliando inteligencia

Veja Aqui !!!

 

Em 2003, uma notícia da NationMaster afirmava que havia 1,4 bilhão de aparelhos de TV instalados no mundo. Contando em geral vários telespectadores para cada um, pode-se inferir que pelo menos metade da humanidade tem acesso à TV, ou melhor, assiste-a diariamente. Praticamente 100% dos lares em países industrializados, e também em muitos em desenvolvimento como o Brasil, tem pelo menos um aparelho. Por outro lado, é cada vez mais frequente a existência de mais de um aparelho por lar – quando os pais compram um novo modelo, o velho em geral vai para o quarto das crianças.

A extensão do uso da TV, ultrapassando de muito outros meios eletrônicos, como vídeo games, computadores e Internet, é uma das causas principais de eu dedicar um artigo abordando somente os problemas que ela causa.

Já há uma vastíssima literatura sobre os efeitos negativos da TV sobre crianças e adolescentes. Uma parte dela será mencionada principalmente no capítulo 5, tendo sido em parte extraída, resumidamente, do meu artigo que trata dos efeitos negativos em crianças e adolescentes de todos os meios eletrônicos, isto é, TV, vídeo games, computador e Internet (Setzer 2008a). Esse artigo contém uma grande quantidade de referências bibliográficas, inclusive com mais detalhes, como dados estatísticos e número das páginas das referências.

Minha intenção foi escrever um artigo. Mas tive tanta coisa para relatar, que este texto acabou ficando com a extensão de um livreto. Todas as citações de originais em línguas estrangeiras são de minha tradução.


2. O aparelho de TV

 

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Nos aparelhos analógicos com tubo de raios catódicos (CRT) tradicionais, a imagem é feita por meio da varredura de um feixe de elétrons, que é arrancado de um filamento incandescente, no qual se estabelece uma grande diferença de potencial (25.000 V na TV colorida) para com a tela metalizada. Assim, os elétrons são arrancados do filamento (catodo), e batem na tela. Uma camada de fósforo faz com que o ponto em que o feixe bate na tela emita luz por alguns instantes. O feixe é movido formando linhas (525 no padrão adotado no Brasil; nem todas aparecem na tela). Esse movimento, chamado de 'varredura', produz primeiro as linhas ímpares, depois as pares, para evitar um pouco o efeito do piscar. Cada um desses conjuntos é exibido na tela 60 vezes por segundo, de modo que a imagem completa é formada 30 vezes por segundo. Na verdade, a imagem jamais está na tela por inteiro; é a retina do olho, ao reter a imagem por 1/10 de segundo, que produz a sensação de que há uma imagem completa. Pode-se perceber o piscar da tela olhando-a bem com o canto do olho. Ao contrário, o cinema exibe imagens completas, na razão de 24 quadros por segundo. Em ambos os casos, há a produção de uma ilusão de movimento, quando algo se move no campo da tela.

 

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A imagem da TV analógica é extremamente grosseira; no sistema NTSC (e que vale para o PAL-M do Brasil) cada linha exibe cerca de 640 pontos, havendo 480 linhas efetivas. Considerando-se que na TV colorida gastam-se 3 pontos (em RGB, isto é, red, green, blue, isto é, cada um com uma das cores vermelho, verde e azul) para cada ponto colorido, o resultado é de cerca de 100.000 pontos coloridos exibidos, o que é muito pouco. De fato, se uma pessoa é transmitida por inteiro, não se percebe a expressão de seu rosto; olhos e boca parecem manchas. Se uma árvore é transmitia por inteiro, não se distinguem as folhas (compare-se com a enorme acuidade visual do olho humano e seu sistema óptico).

 

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No caso da TV digital com tela de LCD, de plasma ou com LEDs, são transmitidos os dados dos pixels (pontos da tela), e a partir deles a imagem é formada. A resolução é muito melhor (pelo menos 2 vezes) do que a analógica: há sistemas de HDTV (High-definition television) com 1280×720 pixels (pontos) e 1920×1080 pixels. Como são exibidos muito mais pontos, tem-se uma acuidade muito melhor, mas ainda bem menor do que no cinema de 35 mm, e ainda muito longe da precisão da vista humana. De um quadro para outro, apenas os pixels que mudam são transmitidos, a fim de se aproveitar melhor a capacidade limitada de transmissão de dados (quando existe uma pequena falha na transmissão, em geral apenas os pixels que mudam aparecem distorcidos). Aparentemente, a imagem da tela é refeita praticamente na mesma velocidade do que a TV com tubo de raios catódicos, o que provavelmente mantém o mesmo efeito hipnótico do piscar da imagem.

É interessante notar que, se um telespectador aproxima-se da tela, ele não vê a imagem mais nítida, pois começa a ver os pontos. Isso contraria a experiência que temos com a visão de objetos no mundo real.

Observando-se as imagens transmitidas, nota-se que elas mudam constantemente. Medi em programas normais o número de mudanças de imagem, incluindo efeitos zoom, mudança do fundo, mudança de lado, etc. Obtive uma média de 20 mudanças por minuto. Já em um video clip, obtive 60 mudanças por minuto, uma verdadeira transmissão psiquedélica. Quanto ao som, nota-se que muitas vezes o locutor não fala normalmente, ele grita. Além disso, o som é bem distorcido – compare-se com uma transmissão de rádio FM para se notar isso.

A transmissão de um canal é obviamente a mesma para uma quantidade enorme de telespectadores, como não poderia deixar de ser para um veículo de comunicação de massa.

Observando-se os programas, nota-se claramente que praticamente todos os eles apelam para emoções fortes. Quase não há programas calmos, apelando para a reflexão e para sentimentos tranquilos, sutis. Além da movimentação das imagens e a gritaria normal, percebe-se que os programas são agitados, com muitas cores. Neil Postman (1987) chama a atenção para o fato de a TV transmitir geralmente tudo sob a forma de show. Ele tem capítulos mostrando que a educação, a política (eleições) e a religião viraram shows. A quantidade de violência que é transmitida é enorme; no capítulo 4 serão apresentados dados concretos sobre levantamentos do número de atos violentos transmitidos. Nesse mesmo capítulo, exponho minha teoria explicando porquê os programas são da maneira que são.


3. O telespectador

 

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Uma observação fenomenológica do telespectador revela o seguinte. Ele está fisicamente estático (a menos de casos muito excepcionais, como programas de ginástica). O ambiente é mantido em penumbra, isto é, com pouca luz. Dos seus órgãos de sentidos, apenas a visão e a audição estão sendo incentivados, e de maneira extremamente parcial: a tela encontra-se parada, portanto a distância é sempre a mesma, não exigindo acomodação de profundidade (variação do cristalino e convergência dos eixos dos olhos). A luminosidade varia muito pouco, de modo que a pupila também quase não muda de abertura.

Normalmente, os olhos não param de se mover, tateando o objeto sendo observado. A figura ao lado foi copiada do livro de Patzlaf (2000, p. 18). Ela mostra, à direita, o movimento de um olho de uma pessoa vendo a foto à esquerda durante alguns minutos; cada traço mostra um movimento do olho. Note-se como a imagem é "tateada", com maior frequência nos olhos, na boca e na risca do cabelo, que realmente chama a atenção.

Em uma pessoa vendo TV os olhos praticamente ficam parados, como se a pessoa estivesse em um estado de desatenção. No caso das telas grandes, esse efeito é diminuído, pois o olho deve mover-se pelos vários trechos da tela. Aliás, essa é uma diferença fundamental da TV para o cinema, pois nesse a tela grande exige que o olho, e até mesmo a cabeça, movimentem-se, o que ajuda a diminuir o estado de sonolência descrito a seguir.

Como o telespectador está fisicamente estático, não faz ação física nenhuma. Antigamente, era necessário levantar-se para mudar de canal; agora, com os controles remotos, nem mesmo esse pequeno esforço é exigido. Não há também necessidade de se fazer um esforço mental para prestar atenção. De fato, o pensamento consciente está praticamente abafado. Esse é um ponto absolutamente crucial do efeito do aparelho de TV sobre o telespectador, e por isso vou alongar-me sobre ele.

Estudos neurofisiológicos mostraram que, poucos minutos, à vezes somente ½ minuto, de assistir TV já colocam normalmente as ondas cerebrais, como medidas por eletroencefalograma, em um estado semelhante ao de sonolência (isto é, de desatenção) ou semi-hipnótico (Krugman 1971, Emery e Emery 1976, Kubey e Csikszentmihalyi 1990). Normalmente, no telespectador existe predominância de ondas teta, lentas, do EEG, de 4 a 7 Hz. Uma pessoa no escuro, ou com olhos fechados, apresenta a mesma predominância de ondas lentas. Em estado de alerta, passam a predominar as ondas beta de 12 a 30 Hz. Essa predominância das ondas lentas cerebrais indica estado de desatenção, de sonolência.

O estado de sonolência e a inatividade mental são tão acentuados, que o gasto de energia de uma pessoa vendo TV é menor do que uma pessoa deitada sem dormir, como foi constatado por Klesges, Shelton e Klesges (1993).

Basta olhar para um telespectador e ver-se-á que a expressão de seu rosto não é de alguém que está prestando atenção ao que está observando. Ao contrário, a expressão é de olhar amortecido (olhar de "peixe morto"), faces e boca em geral também sem demonstrar praticamente nada, enfim, tem-se a impressão de "cara de bobo". Isso é mais nítido em crianças, que tem um rosto mais maleável do que o adulto. Enfim, certamente não é a expressão de alguém observando atentamente o que se passa ao seu redor ou em reflexão profunda.

Pode-se fazer uma experiência muito simples para constatar que o telespectador normalmente não está absorvendo o que está sendo transmitido. Basta perguntar a uma pessoa que acabou de assistir um noticiário quais notícias ela lembra, obviamente sem contar antes que ela será sujeita a esse teste. Emery e Emery (1976) relatam que, em San Francisco, uma enquete feita por telefone mostrou que mais da metade das pessoas não se lembrava de nenhuma notícia sequer! O prof. Anderson Paulino, da Baixada Fluminense, hoje diretor de escola pública nessa região, testou esse fato em uma de suas palestras: de 15 manchetes de um noticiário que ele projetou numa TV a partir de uma gravação, nenhuma pessoa conseguiu lembrar de 3, e apenas algumas lembraram de 2 – por sinal, as 2 notícias mais violentas (comunicação pessoal).

Como se pode entender que o telespectador esteja normalmente nesse estado de semiconsciência, sem pensar ativamente e sem gravar em seu consciente aquilo que viu e ouviu? Há várias explicações para isso; vou iniciar pela minha. Para isso, vou comparar ver TV com leitura. Quando se lê um romance ou um relato, é necessário imaginar os personagens sendo descritos e o ambiente em que se passa a narrativa. Quando se lê um texto filosófico ou científico, é necessário associar conceitos. Em ambos os casos, o pensamento está muito ativo, e a pessoa mantém-se em estado de consciência de atenção e de introspecção ativa – note-se que, ao ler um parágrafo sem prestar atenção, ao chegar-se ao seu fim em geral percebe-se esse fato e é necessário repetir sua leitura, agora prestando atenção ao conteúdo. Por outro lado, qualquer programa de TV apresenta em geral uma sequência relativamente rápida de imagens, como vimos no capítulo 2. Com isso, o telespectador não consegue criar nenhuma imagem própria em sua mente.

Ele tem que 'desligar' essa capacidade mental – a não ser que deixe de olhar para a tela. Por outro lado, ele apenas associa inconscientemente conceitos às imagens sendo transmitidas, pois o pensamento consciente é muito lento, e se fosse refletir sobre cada imagem transmitida, teria que deixar de prestar atenção às seguintes (ou fechar os olhos). Por exemplo, ao aparecer a imagem de uma pessoa conhecida, ele a reconhece, mas num processo automático, e não produzido por um esforço interior de associação de percepções a conceitos. Se ele faz um esforço para pensar conscientemente enquanto olha para a tela, como associar conceitos, devido à lentidão do pensamento consciente deixa de prestar atenção a ela, perdendo então o que é transmitido após a imagem ou a fala sobre os quais resolveu pensar. Qualquer pessoa pode fazer a experiência de prestar toda atenção às imagens e falas que são transmitidas, pensando em cada uma delas; ela verá que em pouquíssimo tempo fica mentalmente exausta, e pode perceber como a tendência é de 'desligar' o pensamento. Assim, o pensamento de um telespectador deixa normalmente de ser consciente, passando a ser automático, de simples reconhecimento dos personagens e dos locais, ou absorvendo as imagens e as falas sem quase refletir sobre elas.

Jane Healey (1990) dá uma explicação para o estado de sonolência usando a excitação dos neurônios relacionados com a consciência. Essa excitação é tão intensa, devido à sucessão rápida das imagens da tela da TV, que eles quase que 'desligam', pois não podem ser ativados na frequência dos impulsos gerados pelo que está sendo visto.

Existe também uma explicação evolucionista (há alguma dessas explicações para qualquer fenômeno nos seres vivos...). Houve uma época em que os seres humanos vagavam pelas florestas e campinas, e o perigo era sempre constante. Era necessário prestar atenção a qualquer mudança no ambiente, pois ela poderia representar algum perigo. Cada mudança de imagem na TV iria então produzir uma atenção, mas a sua sucessão é tão rápida, que é impossível ficar alerta para cada uma. Assim, o cérebro 'desliga' a atenção.

Não me agradam as explicações neurológicas ou evolucionistas, pois são meras especulações e penso que as causas são mais profundas. No caso neurológico, a atividade neuronal é, em minha concepção, uma consequência e não a causa, apesar de ser essencial para se ter consciência dos processos mentais. De qualquer modo, é interessante notar que o estado de desatenção do telespectador é universalmente reconhecido.

Note-se que em vários trechos usei para o telespectador as expressões 'geralmente' e 'normalmente'. Isso se deveu ao fato de que, se o telespectador interessar-se muito sobre o que está sendo transmitido (por exemplo, se forem transmitidas imagens de uma enchente no seu bairro, ou o sequestro de uma pessoa conhecida, etc.), ele pode ficar completamente consciente e prestar atenção no que está vendo e ouvindo. Mas esse é um estado raro.

Vimos então que das atividades mentais, a vontade (que é sempre a origem de uma ação) é eliminada, e o pensamento consciente é abafado. Das atividades interiores, sobra a dos sentimentos. Eles estão sendo incentivados, por meio de emoções fortes, como vimos no capítulo 2. É por meio de emoções fortes que os telespectadores são mantidos acordados, pois a tendência de passarem do estado de sonolência para o sono profundo é muito grande. Vejamos a influência disso nos programas.


4. Os programas

 

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A grosseria da imagem leva a uma situação especial: as imagens de pessoas mostram-nas por inteiro somente em situações especiais, como entrando ou saindo de um ambiente, uma luta corporal, etc. Pode-se verificar que, em novelas, filmes feitos para a TV (ou visando transmissão ou reprodução posterior por meio de uma tela de TV ou de vídeo) as pessoas aparecem em geral somente do tórax para cima. Se elas fossem transmitidas de corpo inteiro, os olhos, nariz e boca seriam apenas manchas, e com isso perder-se-ia a expressão do rosto. Ora, como veremos a seguir, essa expressão, que mostra os sentimentos da pessoa sendo focada, ou do ator querendo transmiti-los, é o que a TV mostra de mais importante.

Como o telespectador está normalmente num estado de consciência de sonolência, ou semi-hipnótico, as emissoras enfrentam um grande problema: como impedir que ele passe desse estado para o sono profundo? (Algumas pessoas tem uma proteção natural e adormecem logo depois de ligarem a TV, independente do programa – aliás, isso mostra que o estado normal de sonolência não depende do programa.) Os diretores de imagem usam justamente o truque de mudarem a imagem constantemente para chamarem, pelo menos um pouco, a atenção do telespectador. Um programa com imagem muito parada é em geral considerado monótono pelos telespectadores, que ou adormecem ou mudam de canal para algo mais emocionante. Já os diretores de programa, sabendo muito bem que a TV atinge primordialmente os sentimentos, procuram transmitir programas com emoções fortes e em forma de show. Ora, uma receita infalível para suscitar emoções fortes no telespectador é transmitir imagens com violência. Porém, há uma outra forma de compreender por que a TV transmite tanta violência: as imagens são movimentadas, grosseiras (ver capítulo 2), e devem ter forte conteúdo emocional, para interessar o telespectadores. Ora, excesso de movimentos, grosseria e emoções fortes são justamente características fundamentais da violência!

A quantidade de atos de agressão e violência que são transmitidos pela TV é de estarrecer. Spitzer (2005) cita A.M.S. Barry (1997), dizendo que a American Medical Association estimou que uma criança, quando acaba o antigo ensino primário (10 a 11 anos) já viu em média 8.000 mortes e mais de 100.000 atos de agressão na TV. Foi também estimado que até os 18 anos um jovem viu 32.000 assassínios e 40.000 tentativas de morte na TV, e que os números são ainda maiores para centros de cidades grandes. Em 2/4/92 foram analisados, em Washington, os programas dos 10 canais mais assistidos, de 6h00 até meia-noite; as 180 horas totais de TV contiveram 1.846 atos explícitos de agressão, dentre os quais 751 com risco de morte e 175 com morte. Isso dá 10 atos de agressão e uma morte por hora de TV, distribuídos entre os vários canais.

O maior estudo americano sobre violência na TV até a sua publicação (Seawall 1997), que durou 3 anos de análise, em períodos de 9 meses, de mais de 6.000 horas de programas em 23 canais, detectou que a maioria dos atos violentos eram "embelezados e saneados" (glamorized and sanitized): 40% de todos esses atos eram iniciados por 'bons' personagens que provavelmente são tomados como modelos atraentes. As consequências de longo prazo daqueles atos só foram mostrados em 15% dos programas. Um dos autores do estudo conclui que "Esses padrões ensinam às crianças que violência é desejável, necessária e indolor". Quase 3/4 das cenas de violência não continham nenhum remorso posterior, e os "maus" personagens ficaram impunes em 40% dos programas. Programas que empregam um tema fortemente contra a violência foram apenas 4% de todos os que a representaram; o número de programas que contêm violência foi de 61%. Mas ficaram mais frequentes no horário nobre, aumentando 14% nos canais abertos e 10% nos a cabo, de 1994 a 97. Interessantemente, o estudo mostrou que a classificação adotada pelos canais para a maioria de seus programas não tinha nada a ver com a violência destes o que, segundo o relatório, invalida totalmente o efeito que teriam os v-chips, dispositivos que deveriam bloquear os programas violentos. O curioso é que o estudo foi comissionado pela National Cable Television Association, mas o meio acadêmico de onde provêm os pesquisadores garante a sua seriedade. Já Zimmerman et al. (2005) constataram que "aproximadamente 60% dos programas de televisão contêm violência."

Jerry Mander (1978) afirma simpaticamente, em seu excelente livro, que a TV transmite violência não devido ao gosto dos telespectadores por ela, mas por ser o que é melhor transmitido por esse aparelho. Ver também outros detalhes em meu artigo sobre TV e violência (Setzer 2000).

Comparemos novamente com a leitura. Muitos livros suscitam emoções, como os de mistério, os que relatam sofrimentos humanos, etc. No entanto, essas emoções são suscitadas pelas imagens criadas interiormente pelo leitor em sua mente, são suas criações, se bem que incentivadas pelo conteúdo da leitura. Já no caso da TV, as emoções são devidas às imagens exteriores que provêm do aparelho e eventual tom de voz dos personagens. Por exemplo, a transmissão da imagem de uma pessoa sofrendo pode produzir sofrimento no telespectador, mas a imagem não foi criada por ele. Note-se que as imagens interiores criadas por um leitor mudam com o tempo, isto é, serão em geral outras se o mesmo texto for lido posteriormente; as imagens de um filme estão congeladas, petrificadas.

Sendo as emoções praticamente a única coisa que toca o telespectador, pode-se compreender o que foi dito no início deste capítulo: para transmitir os sentimentos da pessoa ou do ator sendo focado, é necessário ver a expressão de seu rosto. Devido à grosseria da imagem, é então necessário focar a pessoa apenas do tórax para cima. Em filmes antigos, que não foram feitos para a televisão (certamente antes da década de 1950, provavelmente até o fim dessa década), os atores eram muito mais focados de corpo quase inteiro, pois a imagem grande da tela de cinema, e a granularidade muitíssimo maior da imagem desse último, permitiam que se notasse a expressão do rosto sem que ele preenchesse grande parte da tela.

Uma das consequências de a TV atingir principalmente as emoções do telespectador é que as novelas e filmes em geral transmitem conflitos entre pessoas. Quanto maior o conflito, mais o telespectador sentir-se-á atraído para o programa. Um outro meio de antingir as emoções dos telespectadores é o uso de erotismo.

Eventos calmos, sutis, belos e bons não transmitem emoções fortes. Por isso os noticiários quase só trazem notícias ruins, emocionantes ou chocantes. A glória para a TV é poder transmitir cenas brutais de guerras reais, preferivelmente acontecendo ao vivo. Note-se o que ocorre em uma transmissão de uma corrida de Fórmula 1: a corrida em si é extremamente monótona. Ela se torna interessante numa ultrapassagem difícil, quando o locutor passa a gritar e colocar o máximo de emoção em sua voz, ou então quando há um acidente, e quanto mais grave melhor. A grande glória é quando um ou mais carros espatifam-se, voam partes e pneus para todos os lados, e o máximo mesmo é quando há uma explosão. O que ocorre com a transmissão depois de um evento desses? Ela começa a repeti-lo 10, 20 vezes pois, afinal, muita emoção, preferivelmente violenta, é o que é melhor transmitido pelo aparelho levando em conta o estado de semi-consciência do telespectador. Se a cena não tem essas características, o locutor tenta fazer o telespectador achar que ela as tem, por exemplo gritando "Haja coração!". Aliás, gritaria é o que não falta nos locutores de TV.

No caso dos esportes, há duas situações que atingem especialmente os sentimentos do telespectador: competição acirrada e violência. No último caso, note-se como imagens de uma ação violenta em transmissão esportiva passam a ser repetidas, como por exemplo uma falta especialmente dura no futebol ou um desastre grave em uma corrida de automóveis, como já citado.

É importante reconhecer que as imagens transmitidas pela TV são irreais, pois nela é tudo virtual. Mesmo uma transmissão ao vivo é virtual, estando muito longe da realidade; para começar, trata-se de uma imagem relativamente pequena e plana, com cores artificiais. Na verdade, uma certa cor é produzida na tela pela combinação de 3 cores básicas, isto é, vermelho, verde e azul escuro (RGB, das iniciais em inglês); novamente, é o sistema óptico humano que acaba produzindo a cor que é 'vista' pelo telespectador.

Uma palavra sobre a irrealidade da imagem e da fala da TV. Esta, como o cinema, permite que se transmitam imagens e falas mudando em curtos períodos tanto o espaço como o tempo. Em outras palavras, se uma cena de curta duração transmite algo relativo a uma certa localidade e um certo tempo, a próxima cena pode transmitir algo que se passa em outra localidade totalmente diversa, e no passado ou no futuro em relação à cena anterior. Compare-se com o teatro: nele, cada cena dura um tempo relativamente longo, e se passa na velocidade humana normal. Dessa maneira, o espectador de uma peça de teatro pode, em cada cena, identificar-se com ela, acompanhar o que está ocorrendo, colocar-se na pele de cada personagem. Em outras palavras, o telespectador é colocado numa situação totalmente irreal – o que é também o caso do cinema. Talvez por isso seja muito comum sair-se de uma sala cinematográfica e levar-se alguns momentos para se 'baixar novamente à Terra', isto é, passar-se a vivenciar o mundo real tal qual ele é. Quem sabe por isso o cinema e, hoje, a TV, quando transmitem filmes ou novelas, sejam considerados 'fábricas de sonhos'. Realmente, o espectador é colocado mentalmente num mundo que não é o real e pode observar toda sorte de situações que conflitam com as 'leis' da natureza. No entanto, no sonho as imagens são criadas pelo próprio sujeito.

Ao examinarmos no próximo capítulo as consequências da TV para os telespectadores, é muito importante salientar que o ser humano grava todas as suas experiências, em geral no subconsciente ou no inconsciente. Por exemplo, se alguém encontra uma pessoa e conversa com ela, e não prestou atenção à cor de sapatos da outra, não será capaz de lembrar dessa cor. No entanto, se for hipnotizado no dia seguinte, poderá eventualmente dizer qual era essa cor, que ficou gravada no inconsciente. É interessante também notar que, quanto menor a idade, mais profundamente as crianças gravam suas experiências; daí uma técnica de análise fazer o paciente lembrar do que se passou em sua infância e trazer isso para o eu consciente. Em geral há um limite de idade para isso – é impossível normalmente lembrar de algo que se passou antes de mais ou menos 3 anos de idade, justamente a idade em que a criança começa a referir-se a si própria como 'eu', e não pelo seu próprio nome.

Uma das consequências do fato de a TV ser um aparelho com uma tela, onde aparecem imagens, e o estado em geral de sonolência do telespectador, é que ela é o melhor veículo para a propaganda. Esta é, essencialmente, a técnica de fazer as pessoas comprarem o que não necessitam, ou o que é mais caro, ou é de qualidade inferior. Ora, nada melhor para isso do que o consumidor ver uma propaganda e guardá-la direto no seu subconsciente ou no inconsciente, não passando pelo seu consciente pois senão ele iria criticar o conteúdo. No item 5.18 voltarei ao problema da propaganda, expondo dados e detalhes sobre ele.

A respeito de propaganda, pode-se notar claramente o interesse de crianças pequenas por ela. Acontece que elas adoram repetições, e propaganda é justamente o que é repetido na TV.

Note-se que neste capítulo não houve crítica a programas específicos. A intenção foi mostrar que os programas são o que são devido às características do aparelho e do estado do telespectador, isto é, não deve haver esperança de que eles melhorem. A esse respeito, é interessante formular a pergunta: "O que vende a TV, isto é, do que ela vive?" Seria interessante o leitor tentar dar sua própria resposta antes de prosseguir.

Centerwall (1992) responde essa pergunta da seguinte maneira: "Fora a TV a cabo, a indústria da televisão não está no negócio de vender programas aos telespectadores [audiences]. Ela está no negócio de vender telespectadores aos anunciantes. Questões de 'qualidade' e 'responsabilidade social' são totalmente periféricas à questão de maximizar o tamanho da audiência dentro de um mercado competitivo – e não há fórmula mais testada e verdadeira do que a violência para gerar com segurança grandes audiências que podem ser vendidas aos anunciantes." Entre nós, há até uma expressão para indicar o volume de audiência: 'dar Ibope', fazendo referência a um instituto que faz levantamentos de números de telespectadores bestificados por cada programa. Da próxima vez que o leitor dessas linhas for assistir TV, tente lembrar-se de que, no fundo, está sendo vendido aos anunciantes. A TV educativa ou pública não escapa do objetivo de maximizar audiências, pois necessita justificar o seu gasto pago pelos contribuintes; se ela não tem audiência, ela não se justifica, de modo que seus programas acabam tendo que cair nos mesmos padrões de transmissão dos canais comerciais.

Vou enfatizar o que eu disse: não há nenhuma esperança de que a programação da TV melhore, pois programas realmente educativos, sem agitação, violência e/ou erotismo, seriam extremamente monótonos e teriam baixíssima audiência.


5. Consequências para o telespectador, especialmente crianças e adolescentes

 

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Neste capítulo serão enumeradas várias consequências do uso da TV, com ênfase em crianças e adolescentes. Até o item 5.18, serão seguidos os itens do meu artigo sobre efeitos negativos dos meios eletrônicos em geral, isto é, TV, vídeo game, computador e Internet (Setzer 2008a). Aqui serão apenas extraídos brevemente os resultados das pesquisas citadas naquele artigo, onde podem ser encontrados muito mais detalhes sobre as mesmas, como por exemplo número de sujeitos envolvidos, resultados estatísticos e as páginas das referências citadas.

5.1 Excesso de peso e obesidade

 

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Esses problemas, sabidamente, estão tornando-se epidêmicos. Marshall (2004) estimou que nos EUA morrem cerca de 400.000 pessoas por ano como consequência de excesso de peso. Aliás, chegar a um aeroporto americano é uma experiência chocante: o número de pessoas gordas e obesas que se vê neles é relativamente imenso.

A contribuição da TV para o excesso de peso e obesidade é óbvio. Como vimos no capítulo 3, uma pessoa vendo TV, devido à inatividade física e mental, consome menos energia do que uma deitada sem dormir. Só isso já contribuiria para o aumento de peso, pois em média cada pessoa vê mais de 4 horas de TV por dia. Some-se a essa inatividade o fato de o telespectador estar comendo salgadinhos, docinhos e refrigerantes induzido pela propaganda transmitida, sem qualquer valor nutritivo mas que contribuem decisivamente para o ganho de peso, e tem-se uma fórmula para esse ganho. Cria-se ainda um círculo vicioso: pessoas com excesso de peso tendem a fazer menos exercício físico, pois este exige mais esforço devido à carga adicional de peso, e com isso engordam mais, fazendo ainda menos exercício.

Essa situação é trágica com crianças e adolescentes. Hancox, Milne e Poulton (2004), constataram que, quanto mais uma criança ou adolescente (isto é, entre 5 e 15 anos) veem TV, maior será seu IMC (Índice de Massa Corporal, de BMI, Body Mass Index), o indicador de normalidade ou anormalidade de peso em relação à altura (peso em kg dividido pela altura em m ao quadrado) na idade adulta – ver sua descrição e gráfico de normalidade na Wikipedia. Usando os resultados de Hancox e de Marshall, Manfred Spitzer (2005) calcula que nos EUA no mínimo 68.000 pessoas (17% de 400.000) morrem por ano como consequência de excesso de peso devido à influência da TV. Segundo seus cálculos, lá morrem 3 vezes mais pessoas como consequência do uso de TV do que em acidentes de trânsito.

Wiecha, Peterson e Ludwig (2006) fizeram uma pesquisa resultando que cada hora de aumento de ver TV foi associada com em média 167 kcal adicionais de ingestão de alimentos calóricos não-nutritivos por dia. Segundo os autores, "Nossa análise leva a uma ligação entre assistir TV e mudanças não-saudáveis de hábitos alimentares [dietary changes], sugerindo que a propaganda de alimentos na TV tem uma poderosa influência no que é comido. De fato, estudos mostram que ver TV está inversamente associado com a ingestão de frutas e verduras, que recebem pouco tempo de transmissão, apesar de seu potencial para promover a saúde de vários modos, e de proteger contra ganho de peso [eles citam trabalhos sobre esses fatores]. ... se bem que crianças e jovens são encorajados a prestarem atenção [watch] ao que comem, muitos jovens parecem comer o que eles prestam atenção [watch, isto é, veem na TV], e no processo incrementam o risco de aumentar a ingestão de energia. Na falta de regulamentações restringindo a propaganda de alimentos dirigida a crianças, a redução no tempo de assistir TV é um enfoque promissor para reduzir a ingestão de energia." Eles concluem: "O aumento no uso de TV está associado com aumento na ingestão de calorias entre jovens. Essa associação é feita por meio do aumento de alimentos densamente calóricos e de baixo valor nutritivo, frequentemente anunciados na TV."

 

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Spitzer (2005) chama a atenção para o fato óbvio de que a propaganda de alimentos sem valor nutritivo nunca é feita por pessoas gordas ou com aparência desagradável. Acrescento ainda o fato de esses alimentos conterem quase que somente carboidratos ( junk food), fora sua quase total industrialização, o que leva a uma desnaturação e conseqüente perda de qualidade. Reconhecendo-se que quase tudo o que ocorre de ruim nos EUA aparece depois muito pior no Brasil, podemos imaginar que a situação entre nós é muitíssimo pior.

Vale a pena citar o relatório de 2006 da Kaiser Family Foundation sobre meios eletrônicos e a família (Rideout e Hamel, 2006). "Assistir TV enquanto comem refeições ou salgadinhos [snacks] é relativamente frequente entre crianças pequenas. De fato, 30% das crianças de 6 anos ou menos [o objeto da pesquisa] vivem em lares onde a TV fica ligada a maior parte do tempo (14%) ou todo o tempo (16%) durante as refeições. Em qualquer dia, mais ou menos metade (53%) de todas as crianças comem um salgadinho [snack] ou uma refeição em frente da TV." 13% das crianças comem refeições metade das vezes com a TV ligada; isso significa um total de 43% de crianças que comem pelo menos metade das vezes com a TV ligada. Uma mãe deu o seguinte depoimento: "Nós normalmente vemos TV enquanto almoçamos. ... Ela [a criança] pensa que somente se come em frente da TV." Pode-se bem imaginar a influência que isso tem sobre a digestão, os péssimos alimentos que são ingeridos, e o excesso de peso daí resultante. Voltaremos a esse assunto no item 8.1(c).

PARTE 2