O ano de 2024 chegou com grandes promessas para a neurociência, uma área que, a cada dia, avança a passos largos. Mas, com esses avanços, surgem também inquietações sobre até onde empresas e governos podem ir no controle das pessoas. O renomado especialista José Manuel Muñoz Ortega nos convida a refletir sobre as reais oportunidades e os potenciais riscos que essas inovações trazem.
O que são os Neurodireitos?
Muñoz Ortega, um nome de peso quando o assunto é neuroética e ética da inteligência artificial, tem contribuído intensamente para debates sobre neurodireitos. Ele é membro do Centre of Neurotechnology and Law no Reino Unido e colabora com o Centro Internacional de Neurociência e Ética (CINET), ligado à Fundação Tatiana. Seus estudos já ganharam destaque em importantes publicações internacionais, e sua atuação vai além da pesquisa: ele coordena cursos que visam aproximar neurociência de profissionais de diferentes áreas.
Mas o que é que está em jogo, afinal? Os avanços científicos promissores, como o mapeamento e a manipulação do cérebro, trazem à tona questões sobre privacidade, liberdade de pensamento e até nossa própria identidade. Ah, e não pense que isso é ficção científica! Estamos falando de questões reais e urgentes que, embora possam parecer distantes do nosso cotidiano, estão mais próximas do que imaginamos.
A Revolução Silenciosa da Neurociência
Você pode até nunca ter parado para pensar, mas a neurociência não é um campo tão novo assim. Muñoz Ortega nos lembra que as bases foram lançadas ainda no início do século XX por Ramon y Cajal. No entanto, com as recentes inovações em técnicas de imagem cerebral, optogenética e estimulação cerebral, estamos vivendo uma revolução. E o que isso significa para nós?
Pense no seu cérebro como uma complexa rede de circuitos. Por muito tempo, acreditava-se que funções específicas estavam ligadas a áreas específicas do cérebro. Essa visão já foi superada. Muñoz Ortega até ironiza, comparando essa antiga crença com as teorias do lombrosianismo — aquela ideia ultrapassada de que formas anatômicas poderiam determinar comportamentos criminais. Hoje, sabemos que o cérebro opera em redes e que há muito mais complexidade por trás de nossas ações do que imaginávamos.
Grandes Poderes, Grandes Responsabilidades (e Investimentos)
O que move essa revolução? Como não poderia deixar de ser, os grandes protagonistas dessa história são as grandes potências científicas: EUA, União Europeia, China, Japão... Estamos falando de projetos bilionários, alguns com raízes no interesse militar. E onde há grandes investimentos, há expectativas altíssimas. Mas é aí que mora o perigo.
Muñoz Ortega faz uma crítica afiada à forma como, muitas vezes, transformamos descobertas isoladas em previsões exageradas. Quem nunca ouviu falar de uma nova cura revolucionária que nunca se concretizou? Um exemplo clássico foi o caso da pesquisa sobre Alzheimer, publicada em 2006 e desmentida anos depois, jogando por terra anos de esperanças e investimentos. É uma lembrança amarga de que, na ciência, o caminho não é linear — e as promessas precisam ser encaradas com cautela.
A Neurociência Pode Moldar o Futuro — e Isso é Assustador
À medida que compreendemos melhor o cérebro, a tentação de influenciá-lo cresce. Parece uma ideia tirada de um filme distópico: controlar comportamentos, alterar memórias ou até intervir na personalidade de alguém. Mas não estamos tão longe assim disso.
Imagine que você está usando um dispositivo que coleta dados do seu cérebro. O que aconteceria se esses dados fossem combinados com outras informações pessoais, como seu histórico de compras ou suas interações nas redes sociais? De repente, sua vida privada pode estar nas mãos de empresas e governos com interesses nada nobres. Hoje, esses dados cerebrais podem não ser determinantes, mas e daqui a 10 anos? As consequências podem ser imensas — e isso coloca em xeque a própria noção de liberdade e privacidade.
A Urgência de Regulamentar os Neurodireitos
Diante desses cenários, surge a necessidade urgente de discutir os neurodireitos. Não estamos falando apenas de proteger nossos dados cerebrais, mas de garantir que nosso direito à privacidade seja preservado em um mundo onde o cérebro pode ser "lido". A ideia de "consentimento duplo", por exemplo, sugere que, além de consentir com a coleta de dados, as pessoas devem ter o direito de controlar como esses dados serão usados e por quem. Já o "consentimento contínuo" propõe que esse consentimento possa ser revogado a qualquer momento.
Mas será que os Estados estão prontos para lidar com essa questão? A resposta, infelizmente, não é tão otimista. Mesmo quando leis são criadas, sua implementação esbarra em uma série de obstáculos, como a falta de capacidade e o conflito de interesses entre governos e as grandes empresas de tecnologia. A neurociência, afinal, é uma área de cooperação global, e a regulamentação internacional será crucial para garantir que esses direitos sejam respeitados.
Neurodireitos: O Futuro da Humanidade em Debate
Ao final das contas, a discussão sobre neurodireitos vai muito além da ciência. Estamos falando sobre como queremos que o futuro da humanidade seja moldado. É claro que esses avanços trazem benefícios enormes — desde curas para doenças neurológicas até novas formas de comunicação para pacientes com condições como ELA. Mas a questão é: a que custo?
Assim como na ficção científica, o futuro nos apresenta um dilema ético. Precisamos de uma regulamentação robusta, que proteja a dignidade humana e garanta que a neurociência sirva à humanidade — e não o contrário. Em um mundo onde o controle sobre o cérebro pode se tornar uma arma poderosa, nossos direitos, especialmente o direito à liberdade de pensamento e privacidade, nunca foram tão fundamentais.
Portanto, estamos à beira de um novo horizonte. Um horizonte fascinante e incerto. E cabe a nós, enquanto sociedade, decidirmos que caminho seguir.