O que chamamos hoje de Bruxaria não possui necessariamente relação direta com os cultos pré-cristãos, como se pode facilmente assumir com a onda de textos sobre bruxaria dizendo o contrário. Na realidade ela surgiu a partir da crença e constatação de que algumas pessoas conseguiam manipular realidades.
Isto poderia estar ligado a um determinado culto, embora pudesse subjazer a um facilmente. Um xamã ou sacerdote, por exemplo, podia receber uma iniciação dentro de determinado culto onde se previa a ignição de um poder que ocorria ou florescia naturalmente em algumas pessoas e que, não necessariamente, pertenciam ao culto em questão, ou ainda, não estavam em posição de receber este reconhecimento sacerdotal. Traduzindo isto para uma linguagem moderna, podemos dizer que um padre possui poder de abençoar conferido a ele através um corpo maior de sacerdotes que volta ao tempo na figura de um padre fundador, presumivelmente alguém que possuía este magnífico poder. Por outro lado, outras pessoas também possuem este poder sem a necessidade de uma ordenação ou filiação, bem como outros dons que não seriam significativos ou aceitáveis a um padre. Um sacerdote de uma religião é feito através de um processo de transmissão horizontal, humana. Um bruxo, por uma transmissão vertical, direta e espiritual/sobrenatural. O Bruxo não precisa de aprovação de seus pares e não precisa sequer trabalhar em grupo, quando o faz, juramentos sagrados são feitos para preservação de um vínculo de absoluta confiança e grandeza gerada pelo amor fraternal – um reconhecimento de humildade perante os Mistérios, dos quais ninguém é portador absoluto. Estes pactos nada têm a ver com um ‘poder bruxo’ transmitido, pois isto é algo que nasce com a pessoa, e no máximo, criam uma sintonia com aquela trabalhada por uma determinada ‘linhagem’.
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Eis a diferença entre o ‘sacerdote de uma religião’ e um ‘bruxo’: no caso do segundo, a sintonia natural se dá pela observação da natureza cujas celebrações são constatadas na realidade observável, nas percepções culturais da terra em que pisa ou mesmo da terra com a qual se possui conexão.
Como exemplo, poderíamos dizer que um bruxo não celebraria o milho onde se planta feijão, nem celebraria a natureza onde ela é impedida de se expandir. Uma bruxa conhece o ‘espírito’ do milho e o do feijão, ouve o clamor da terra em seu ritmo de eterna expansão enquanto o ‘sacerdote de uma religião’ trabalha com uma realidade menos local e mais idealizada.
Não discordo das reclamações sobre a marginalidade das práticas, mas foram justamente as difamações que mantiveram as bruxas vivas no imaginário popular. ‘Envenenadora’, a bruxa sempre foi um ser amoral e, portanto, imortal, pois é uma das únicas personagens míticas que admitem a conexão divina/sobrenatural livre de culpa.
Os praticantes da chamada ‘bruxaria tradicional’ nem sempre possuem uma conexão imediata com a tradição, embora suas vidas só encontrem rumo quando aprendem estes valores ‘na forja’ da realidade diária. Nem a ‘Tradição’ está invisível para qualquer um que tiver ‘olhos para ver e ouvidos para ouvir’. A ‘tradição’ se desdobra ao advogado, santo, místico, mago ou bruxa igualmente e sem distinções. É a nossa capacidade de mudarmos a realidade à nossa volta que determina o quanto estamos afinados com os fundamentos da tradição.
A Bruxaria ‘Tradicional’ passou a existir como um rótulo de identificação, justamente quando houve a necessidade de se preservar o espaço das práticas que eram consideradas heréticas (de manipulação de forças ‘sagradas’ ou ‘profanas’ a fim de se alterar realidades). A institucionalização de práticas sacerdotais que envolviam práticas heréticas sempre correu na contramão do que bruxos tradicionais faziam e, portanto, é justo que clamem o direito de reconhecimento de sua minoria completamente desprovida de interesse em proselitismo.
A Bruxaria era ‘pagã’ na acepção da dependência do campo, independente se Apolo passava a ser chamado Cristo. Bruxos tradicionais sempre estarão ligados a uma pequena área geográfica, pois é dali que partem seus gênios e elementos que são, em última instância, seus parceiros espirituais. Portanto, é justo afirmar que Bruxaria não é religião, mas uma forma de encarar os desafios da vida no campo, de certo ponto de vista que parte tanto do mundo celestial quanto do subterrâneo, lar dos mortos poderosos que jamais devem ser esquecidos.
Quando se fala sobre bruxaria familiar, existem aqueles que chegam ao absurdo de plantar ‘ordens familiares’ para justificar a tradição, mas não há qualquer base lógica ou histórica para fundamentar tal premissa. O que temos historicamente é a criação das guildas ligadas às ocupações da época, cujas liturgias eram legadas aos sucessores. Assim começamos a falar do nascimento da maçonaria (dos profissionais construtores) e de alguns grupos, como os ferreiros, sapateiros, etc.
Na resistência do velho cristianismo ao novo cristianismo, vemos surgir os satanistas com suas missas negras e as bruxas com seus ‘sabbaths’ – festejos com boa comida, boa dança e liberdade sexual – real ou imaginária, mas certamente desejado em plena época de castração social, moral e religiosa. Foi desta época em diante que pudemos ouvir relatos sobreviventes do sincretismo pagão dentro do cristianismo.
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Certo autor chega a manipular a história, ligando a bruxaria tradicional à formação de base política para movimentos separatistas, mas isto ultrapassa a barreira do razoável.
Na mais absoluta realidade, os bruxos ‘não wiccanos’, tradicionais só saíram do armário depois de Gardner, antes disso não precisaram levantar qualquer bandeira para chamar a atenção sobre si. Neste aspecto, Gardner foi fundamental, assim como havia sido Crowley, num âmbito mais amplo, social, mais do que religioso ou mágico. Bruxos nunca estiveram ligados a movimentos separatistas, quando passaram a se unir sob o rótulo “Bruxaria Tradicional” tiveram o propósito único de não deixar certas práticas regionais – culturais - morrerem. ‘Bruxos’ nunca se uniram para cair na armadilha de ‘destruir a oposição’, que faz nada mais do que afirmar seus valores.
O mesmo autor ainda faz distinção entre uma “polêmica... Bruxaria Tradicional Tardia”, e ainda os classifica ignorantemente de “...adicionar outros conceitos como maçonaria, satanismo como repúdio ao Catolicismo e Magia Cerimonial.” Todas as ligações e separações mencionadas são ilusórias, criadas pelo autor do texto, tal polêmica sequer existe ou existiu. O satanismo é um movimento cultural/cúltico por seu próprio direito, pode ser datado da resistência ao protestantismo, não ao catolicismo ou o cristianismo como um todo, exatamente na época em que se perseguiam as heresias dentro da própria Igreja e que culminou na morte de muita gente.
A linguagem dada às práticas e mistérios sempre variará para atender as necessidades de quem as opera. Dizer que a bruxaria não recebeu influências diversas de acordo com o espírito do tempo é absurdo. Os ‘valores do campo’, por exemplo, são para quem mora no campo, que planta, colhe e se alivia quando a chuva cai. Para que estes valores migrem para a cidade eles tem que falar outra linguagem, como fazem os sacerdotes das religiões neo-pagãs. Para o bruxo erudito, é comum que suas expressões sejam, por exemplo, de fundamentação mito-poéticas.
Bruxos tradicionais não ultrapassam a barreira do que são. Há quem critique os sacerdotes neo-pagãos que honestamente têm buscado se aprofundar nos valores que juram defender, e, portanto, como sacerdotes de sua religião, velha, nova ou reconstruída, devem ser respeitados como tal. Certos bruxos modernos determinam que se tornaram sacerdotes de muitos deuses de diferentes panteões, e é aí que confusões ocorrem, ainda assim, existem grupos de orientação diferente que conseguem ser coerentes em suas direções. Na realidade, isto nem é de interesse do bruxo tradicional, que trabalha com algo subjacente e independente de máscara – usando-as diversas vezes muito mais como uma provocação social ou porque determinada prática lhe foi passada daquela forma. Se aqui comento, é justamente para desmistificar ‘culto de bruxaria tradicional’ pretendendo um sacerdócio que ‘non ecziste’, como diria o infame Quevedo. Um ‘bruxo tradicional’ nos moldes do campo pensa assim: “Se você adapta um panteão, você adota uma cosmovisão, se você adota uma terra, você adota a si mesmo.”
A bruxaria tradicional não precisa usar subtítulos imbecis como “a mais Antiga”, “ancestral”, “tribal”ou “poderosa”, nem precisa sair de seu isolamento, a menos que se queira arrebanhar pessoas, por um insano proselitismo em nome de quantidade ao invés de poder nato. A bruxa tradicional se ‘codifica’ com os novos tempos porque não é engessada, e sua fluidez foi justamente o que permitiu que a tradição se mantivesse viva apesar de tudo. Bruxaria Tradicional não é religião!
Como tal, quem buscar rituais coletivos deve ir consciente que isto não é tradicional, pois o que até hoje consta de grupos que trabalham assim é que jamais colocariam um estranho em um círculo de confiança, o que é considerado - no mínimo - irresponsável. Você vai reconhecer a quem buscar contatos ou informações através dos seguintes conceitos:
- É irrelevante o ‘uso de panteões não europeus’. É irrelevante qualquer religião. O que importa é o que se desenvolve marginalmente a ela.
- Práticas cerimoniais, teatrais e complexas: Se esta é a linguagem escolhida, não há limite, regra ou lei que limite.
- Símbolos geométricos/ matemáticos – Ex.: Quadrado, Estrela de Salomão, etc... – são usados extensivamente, como é provado historicamente pelos relatos da época da inquisição, onde várias ‘bruxas’ seriam portadoras de ‘almanaques’. Estes almanaques divulgavam quadrados, estrelas, o que quer que fosse. O bruxo que não experimentava não era ‘o sábio’, assim como em nossos dias.
- Elementos/ Conceitos de outras culturas, como por exemplo Chakras, Karma e Dharma, foram adotados por religiões e até por terapias alternativas. Novamente, é uma questão de linguagem. Portanto, seu uso na bruxaria é relevante para quem assim escolher. Contudo, um bruxo tradicional não descartaria a origem e contexto do termo tão facilmente.
- Bruxos tradicionais não se envolvem em ativismos. Pessoas se envolvem em ativismo.
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- Qualquer filiação a uma instituição centralizadora (Associação/Federação/Conselho de Bruxaria) deve ser vista com alguma suspeita. Bruxos não se submetem ao escrutínio alheio para serem reconhecidos como tal. Reconhece-se o bruxo através do valor de seu conhecimento, caráter ou da prova de seu poder através de resultados obtidos.
Por fim, gostaria de ressaltar que o que foi escrito aqui de forma muito simplificada é o que encontra comprovação histórica, e como certa vez um Sábio da Arte disse, há “história da magia e a magia da história”. Cabe a cada um escolher seu caminho.
Fonte: http://www.diablerie.com.br