Imagine entrar em uma igreja neogótica do século XIX, na pequena cidade bávara de Fuerth, e ser recebido por um pregador... que não é humano. Surreal? Pois é exatamente isso que aconteceu em 2023, quando a inteligência artificial (IA) deu sua primeira "palhinha" como líder de um culto luterano experimental. A experiência, conduzida por um chatbot e acompanhada por mais de 300 curiosos fiéis, misturou o antigo e o futurista de uma maneira que poucos poderiam prever.
"Levantem-se e louvem ao Senhor" — Diz o ChatGPT
Na enorme tela acima do altar, um avatar de um homem negro, barbudo, sem expressão, mas com uma voz firme, deu início ao sermão. "Queridos amigos, é uma honra para mim estar aqui e pregar para vocês como a primeira inteligência artificial na convenção dos protestantes na Alemanha deste ano", disse o chatbot. Palavras diretas, quase robóticas, mas cheias de significado, atraíram olhares atentos e celulares a postos.
Essa pregação não foi obra do acaso. Jonas Simmerlein, teólogo e filósofo da Universidade de Viena, "orquestrou" o evento. Quer dizer, 98% do conteúdo foi gerado pela IA, enquanto o jovem de 29 anos apenas ajustou os detalhes. O culto de 40 minutos contou com salmos, orações, bênçãos e até música, tudo criado com um toque digital.
Fila na porta e olhos críticos no altar
O experimento atraiu uma multidão tão grande que uma longa fila se formou antes do culto. Afinal, quem não ficaria curioso? Mas as reações foram um misto de fascínio e desconforto. Heiderose Schmidt, uma profissional de TI, descreveu sua experiência como "desconcertante". "Não havia coração nem alma. Tudo parecia vazio, sem emoção", disse ela. Já Marc Jansen, um pastor luterano de 31 anos, surpreendeu-se positivamente: "Achei que seria pior, mas funcionou bem, embora faltasse espiritualidade."
O que uniu essas opiniões foi a constatação de que a IA ainda está longe de substituir um pastor humano. "A pastora conhece sua congregação, vive com ela, enterra seus mortos. A IA não pode fazer isso", destacou Simmerlein.
IA e religião: inovação ou ameaça?
A introdução da inteligência artificial em um espaço tão humano quanto a religião levanta uma série de questões éticas e filosóficas. Por um lado, ela pode facilitar a inclusão, permitindo que mais pessoas participem de cultos mesmo à distância. Imagine um serviço traduzido em tempo real para diferentes idiomas ou adaptado para aqueles com deficiências auditivas ou visuais. Um futuro acessível parece promissor.
Por outro lado, há perigos evidentes. A pesquisadora Anna Puzio alerta: "A IA é muito parecida com o humano e pode enganar facilmente." Além disso, existe o risco de ela ser usada para disseminar visões unilaterais, desconsiderando a diversidade dentro da própria fé cristã.
Um assistente, não um substituto
Para Simmerlein, a IA não deve substituir líderes religiosos, mas sim atuar como uma ferramenta. "Alguns pastores buscam inspiração na literatura. Por que não pedir ideias à IA para sermões?", questiona. A ideia é simples: aliviar tarefas repetitivas, liberando tempo para o cuidado espiritual que só um ser humano pode oferecer.
Porém, como ficou evidente no culto experimental, a IA tem limitações claras. Faltou interação, sensibilidade, aquele toque único que só um pregador em carne e osso pode proporcionar. Quando a congregação ria ou reagia, o avatar na tela permanecia impassível. Para muitos, isso quebrou a conexão espiritual.
"Agora é a hora": reflexões de um futuro que já chegou
O tema da convenção deste ano, "Agora é a hora", resume bem o dilema: estamos em um momento crucial de transição. A IA está entrando em nossas vidas em todos os aspectos, e aprender a lidar com ela não é mais uma escolha, mas uma necessidade. A pergunta que fica é: até onde estamos dispostos a deixar que a tecnologia toque o que temos de mais humano?
Afinal, a fé não é só sobre palavras bem escolhidas ou discursos eloquentes. É sobre conexão, emoção, humanidade. E, por enquanto, isso ainda é algo que uma tela brilhante e uma voz robótica não podem entregar.
Que futuro nos aguarda? Talvez, apenas o tempo e nossa própria capacidade de adaptação dirão. Enquanto isso, os bancos da igreja, físicos ou virtuais, continuarão a ser ocupados por aqueles em busca de respostas — sejam elas humanas ou artificiais.