VERDADES INCONVENIENTES

O que não está escrito na bula

bularemeTOPOPor Marcela Busato, 26/11/2013 - Um levantamento sugere que as companhias farmacêuticas não contam tudo sobre os remédios. Nunca foi tão seguro usar um medicamento. Nos primórdios da medicina, poções e emplastros viravam tratamento sem ninguém entender ao certo por que – e se – funcionavam. Hoje, técnicas modernas de laboratório permitem traçar com precisão o mecanismo de ação da molécula usada como base de um medicamento. Seus benefícios e possíveis efeitos colaterais são analisados em várias etapas de estudos, e o novo remédio só chega ao mercado se passar também pelo crivo das autoridades de saúde. Essa rotina aprimorada ao longo de décadas é questionada por ...

um grupo cada vez mais ruidoso. São cientistas, médicos e observadores da área de saúde. Eles não estão convencidos de que esse sistema é suficiente para garantir a segurança dos medicamentos.

Afirmam que a indústria farmacêutica e os pesquisadores que trabalham no teste de novas drogas omitem uma parte importante dos dados sobre os reais benefícios e riscos dos remédios. “Por causa disso, há drogas aprovadas hoje que são piores do que aquelas que estão no mercado”, escreve o psiquiatra britânico Ben Goldacre, autor do livro Bad pharma (algo como Farmácia ruim), sem edição no Brasil.

Goldacre é um dos fundadores do movimento All Trials (Todas as Pesquisas, numa tradução livre). O objetivo do grupo – formado por centros de pesquisa da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e jornais científicos prestigiados – é pressionar a indústria farmacêutica a divulgar publicamente todos os dados de que dispõe sobre seus remédios. São relatórios, com algumas centenas de páginas, que trazem em detalhes os testes feitos com voluntários para avaliar a segurança e a eficácia de uma droga. Como esses documentos contêm dados pessoais dos pacientes e as inovações do novo remédio, são mantidos sob sigilo. “Há um risco real para a saúde pública se essas informações forem divulgadas”, diz Richard Bergström, diretor da Federação Europeia das Indústrias e Associações Farmacêuticas.

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Os relatórios só são entregues às autoridades de saúde pública. A ideia é que, com a divulgação pública desses documentos, pesquisadores sem laços com a indústria façam novas análises, em tese livres de interesses comerciais, para detectar problemas de eficácia e segurança que não tenham sido destacados pela empresa – nem percebidos pelos órgãos reguladores.

A pressão sobre a indústria se baseia em casos recentes de remédios retirados do mercado ou cuja eficácia foi contestada após novas análises dos estudos. A publicação de revisões que sugerem a omissão dos dados também contribuiu. A mais recente foi divulgada no mês passado pela agência do governo da Alemanha que avalia novas tecnologias em saúde, a IQWiG. Os alemães compararam os dados dos relatórios da indústria a artigos que haviam sido publicados em periódicos científicos. Nesses jornais dirigidos a especialistas, os cientistas que fazem testes de novas moléculas para a indústria publicam os resultados mais importantes dos estudos. Segundo o levantamento da agência alemã, alguns igualmente relevantes ficam de fora. Das 1.080 conclusões, apenas 39% haviam sido relatadas. Informações como a não remissão dos sintomas após o uso da medicação e o aparecimento de alguns efeitos colaterais não chegam ao conhecimento dos médicos e dos demais cientistas.

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A Agência Europeia de Medicamentos (EMA), que avalia novas drogas na União Europeia, promete divulgar publicamente todos os relatórios que receber a partir do próximo ano. Ainda que a resolução entre vigor, permanecerá um buraco negro. Ela só valerá para os remédios ainda a ser lançados. Os documentos das drogas já aprovadas, hoje receitadas para os pacientes, continuarão sob sigilo. A revelação de dados sobre remédios na Europa e nos Estados Unidos é importante também para os consumidores brasileiros. As decisões tomadas por órgãos reguladores de lá costumam ser usadas como referência por autoridades daqui na hora de aprovar a venda de um novo produto no país.

Iniciativas anteriores já tentaram resolver o problema dos dados ocultos. Em 2007, os Estados Unidos tornaram obrigatório que os pesquisadores, antes de iniciar qualquer estudo clínico, registrem a pesquisa numa base de dados virtual, chamada Clinical Trials. Um sistema semelhante existe na Europa, e o Brasil inaugurou o seu em 2010, Registro Brasileiro de Ensaios Clínicos, ou Rebec, coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz. O objetivo desses sistemas é rastrear os pesquisadores responsáveis por um teste, caso o resultado não seja divulgado – e, então, pedir os dados.

Estudos que ficam guardados na gaveta são um problema. As pesquisas esquecidas costumam ser as que tiveram resultado negativo: o remédio testado não surtiu o benefício esperado ou causou muitos efeitos colaterais. Se esses dados somem do mapa e só são divulgadas as pesquisas que chegaram a conclusões positivas (talvez obtidas com a ajuda de uma metodologia não tão rigorosa), os órgãos reguladores não têm o conjunto de dados completos para avaliar a segurança e eficácia de um medicamento. Os médicos também perdem a base de comparação para escolher o remédio mais eficaz para seus pacientes. Segundo uma estimativa do Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde, do Reino Unido, o problema é frequente: apenas metade de todos os estudos clínicos é publicada. O viés na divulgação não está restrito aos testes patrocinados pela indústria. Mesmo análises feitas por pesquisadores independentes podem ficar engavetadas se tiverem resultados negativos. Os próprios periódicos científicos costumam dar preferência à publicação de conclusões positivas. Estima-se que os testes que trazem boas notícias têm o dobro de chance de ser aceitos.

O registro compulsório inibe a omissão de estudos com resultados negativos e ainda pode resolver um segundo problema: a distorção de dados. Além de registrar o teste, os pesquisadores devem informar no sistema as conclusões, depois que ele for encerrado. É uma maneira de verificar se elas batem com os objetivos iniciais da pesquisa e evitar um truque usado por alguns cientistas para disfarçar resultados negativos. “Se um pesquisador altera os objetivos iniciais do estudo, geralmente é porque ele foi negativo, e o novo objetivo acrescentado foi positivo”, afirma o pesquisador francês Philippe Ravaud. Ele fez uma análise de 300 artigos científicos, escritos por pesquisadores de diferentes nacionalidades.

Descobriu que apenas 45% dos testes haviam sido registrados adequadamente no país em que o estudo fora conduzido. Entre esses, 31% apresentaram conclusões diferentes dos objetivos. “Essa prática gera os dados tendenciosos porque torna os resultados positivos quando eles não são”, diz Ravaud. No Brasil, essa vigilância é ainda mais difícil, porque os pesquisadores não são obrigados a informar os resultados na base de dados do Rebec. “Não há uma discussão no país para tornar isso obrigatório”, diz o médico Josué Laguardia, coordenador do Rebec. “Nos EUA, demorou dez anos para o registro dos resultados ser obrigatório, e ele nem é exigido para todos os tipos de estudo.”

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Os sistemas de registro de pesquisas clínicas foram um avanço importante, mas não são imunes a falhas. A divulgação dos relatórios completos da indústria farmacêutica, dizem os defensores da ideia, é a única maneira de sabermos, exatamente, o que estamos tomando. “É uma questão de confiança e responsabilidade”, diz Hans-Georg Eichler, da EMA. Os dados podem até ser revelados para que pesquisadores independentes verifiquem. “A responsabilidade sobre os benefícios e riscos dos remédios que tomamos continua sendo da indústria e dos órgãos reguladores”, diz Antônio Britto, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa.

Fonte: https://epoca.globo.com/