Imagine um cenário onde, enquanto milhões de pessoas enfrentavam o caos da pandemia — filas intermináveis por testes, hospitais lotados e medo constante — alguns dos nossos representantes no Congresso estavam ocupados negociando ações de empresas que lucravam com essa mesma crise. Parece uma trama de filme, não é? Mas foi exatamente isso que aconteceu. Pelo menos 75 legisladores nos Estados Unidos compraram e venderam ações de empresas envolvidas diretamente na resposta à pandemia de COVID-19, desde fabricantes de vacinas até empresas de testes e tratamentos.
O Caso das Vacinas: "Apostando" na Saúde Pública?
Entre os casos mais gritantes estão aqueles em que senadores e representantes investiram em gigantes farmacêuticas como Pfizer, Johnson & Johnson e Moderna — as mesmas empresas que produziram as vacinas que salvaram milhões de vidas. Em 2020, pelo menos 13 senadores e 35 representantes detinham ações da Johnson & Johnson, cuja vacina de dose única foi administrada em mais de 15 milhões de americanos. Além disso, outros 11 senadores e 34 deputados tinham participações na Pfizer, enquanto dois representantes ou seus cônjuges possuíam ações da Moderna, empresa cujas ações dispararam durante a pandemia.
O caso da Moderna é particularmente emblemático. No início de 2020, suas ações eram negociadas abaixo de US$ 20. À medida que a pandemia se intensificava, o valor dessas ações crescia exponencialmente, atingindo mais de US$ 455 por ação em setembro de 2021. Não é difícil imaginar o quão lucrativo isso pode ter sido para quem apostou nesse momento específico. E entre esses investidores estavam membros do Congresso, que votavam em pacotes de alívio econômico e autorizavam bilhões em ajuda às empresas farmacêuticas.
Um exemplo notável é o de Marie Newman, deputada democrata de Illinois. Seu marido, Jim Newman, negociou ações tanto da Johnson & Johnson quanto da Moderna. Segundo o escritório de Newman, essas transações foram feitas com objetivos de poupança e aposentadoria, mas ainda assim levantam questões sobre conflitos de interesse. Afinal, quando você está ajudando a decidir bilhões em fundos públicos para combater a pandemia, parece ético investir nas empresas que se beneficiam dessas decisões?
Republicanos Também Entraram na Dança
Mas não pense que só os democratas estavam nessa. Alguns republicanos também surfaram na onda das vacinas, mesmo que publicamente criticassem políticas relacionadas a elas. Um caso interessante é o de Austin Scott, representante da Geórgia. Enquanto ele se opunha aos mandatos de vacina impostos pelo presidente Joe Biden, sua esposa, Vivien Scott, negociava até US$ 50.000 em ações da Johnson & Johnson. Quando questionado, Scott afirmou que suas negociações seguiam todas as leis aplicáveis — uma justificativa que, convenhamos, soa como música para quem quer evitar escrutínio.
Outro caso curioso é o de Marjorie Taylor Greene, conhecida por suas declarações polêmicas contra vacinas. Apesar de se gabar de nunca ter tomado a vacina, ela relatou possuir ações de empresas como Pfizer, Johnson & Johnson e AstraZeneca em 2020. Greene atribuiu tudo a um consultor financeiro independente, afirmando que não tinha controle direto sobre suas negociações. É quase como dizer: "Não fui eu, foi meu gerente!" — uma desculpa que muitos de nós já tentamos usar em momentos de aperto.
Investimentos Além das Vacinas: Máscaras, Testes e Tratamentos
As vacinas não foram o único foco desses investimentos. Empresas que forneciam equipamentos de proteção individual (EPIs), realizavam testes e desenvolviam tratamentos também apareceram nas carteiras de alguns legisladores. Por exemplo, John Yarmuth, presidente do Comitê de Orçamento da Câmara, vendeu até US$ 15.000 em ações da 3M, uma empresa conhecida por fabricar máscaras N95. Earl Blumenauer, do Oregon, teve sua esposa comprando ações da Quest Diagnostics, uma grande fornecedora de testes de COVID-19. Já Don Beyer, da Virgínia, investiu na Regeneron Pharmaceuticals, responsável por um tratamento usado até mesmo no então presidente Donald Trump.
Esses exemplos ilustram algo preocupante: enquanto o Congresso debatia medidas para salvar vidas, alguns de seus membros pareciam estar mais preocupados em salvar seus próprios bolsos. E aqui vale uma pausa para refletirmos: será que essas decisões de investimento foram realmente independentes? Ou será que informações privilegiadas influenciaram essas escolhas?
Conflitos de Interesse e a Falta de Transparência
Os casos acima destacam um problema maior: a falta de mecanismos robustos para evitar conflitos de interesse no Congresso. Embora existam regras que proíbem o uso de informações privilegiadas para lucrar, elas são frequentemente ignoradas ou contornadas. Um exemplo claro é o de Tom Malinowski, democrata de Nova Jersey, que vendeu até US$ 15.000 em ações da Chembio Diagnostics, uma empresa de testes de COVID-19, no início da pandemia. Ele só admitiu as transações depois que o Insider revelou suas atividades. Desde então, colocou seus ativos em uma "confiança cega qualificada", mas continua sob investigação por violar normas éticas.
Além disso, há um debate sobre a viabilidade de impedir que legisladores invistam em setores sob sua jurisdição. Stanley Brand, ex-conselheiro geral da Câmara, argumenta que tal medida poderia criar um "pesadelo regulatório", desqualificando metade de um comitê em certos casos. No entanto, especialistas como Joshua Silver, CEO do grupo anticorrupção RepresentUs, defendem que a situação atual é insustentável. "Vimos 50 anos de constante desmoronamento da ética do governo nas mãos de ricos interesses especiais e dos políticos que os servem", disse ele.
O Papel do Lobby Farmacêutico
Outro fator importante é o lobby farmacêutico, que aumentou significativamente durante a pandemia. A Pfizer liderou o ranking, gastando quase US$ 11 milhões em lobby junto ao governo federal em 2020. A Johnson & Johnson não ficou muito atrás, com US$ 7,9 milhões. Essas empresas também contribuíram generosamente para campanhas políticas, favorecendo principalmente candidatos democratas. Isso cria um ciclo vicioso, onde os legisladores que deveriam supervisionar essas empresas acabam sendo financiados por elas.
Reflexão Final: Quem Está Realmente no Controle?
Tudo isso nos leva a uma pergunta incômoda: quem está realmente no controle? Enquanto os legisladores investem em empresas que dependem de decisões governamentais, fica difícil confiar que suas ações são guiadas pelo interesse público. A pandemia expôs não apenas fragilidades no sistema de saúde, mas também falhas profundas na ética política.
Se quisermos mudar esse cenário, precisamos pressionar por maior transparência e responsabilidade. Como disse Silver, "a melhor maneira de o país voltar aos trilhos é os eleitores cortarem os laços com os oportunistas egoístas". Talvez seja hora de começarmos a prestar mais atenção em quem elegemos — e no que eles fazem depois de chegarem ao poder.