Imagine entrar em um porão escuro e isolado, escondido nas profundezas de uma das maiores universidades da Dinamarca. Lá, entre prateleiras que parecem infinitas, repousam quase 10 mil baldes numerados, cada um contendo um cérebro humano preservado em formol. (04/2024) É um cenário que, no mínimo, provoca arrepios — mas também levanta perguntas importantes sobre ciência, ética e o passado sombrio dos cuidados psiquiátricos no país.
Essa coleção monumental de cérebros — são 9.479 ao todo — foi reunida ao longo de quatro décadas, até a década de 1980, e é considerada a maior do mundo. Mas o que surpreende é que a maioria desses cérebros foi coletada sem o consentimento dos pacientes ou de suas famílias. E, como era de se esperar, isso gerou um intenso debate nacional sobre o destino de tantos órgãos humanos.
A Origem Macabra
Tudo começou logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1945. Pacientes com transtornos mentais que morriam em instituições psiquiátricas dinamarquesas tinham seus cérebros removidos durante autópsias e enviados ao Instituto de Patologia Cerebral, em Aarhus. Esses cérebros eram meticulosamente analisados, com anotações detalhadas, enquanto os corpos eram enterrados discretamente em cemitérios próximos. Na época, ninguém imaginava a polêmica que surgiria décadas depois.
Segundo Martin Wirenfeldt Nielsen, patologista e atual diretor da coleção, todos os cérebros estão “muito bem documentados”. Eles têm informações completas sobre os pacientes: onde nasceram, como viveram e o que os levou à morte. A maioria dessas pessoas passou a vida inteira em hospitais psiquiátricos, onde eram frequentemente submetidas a procedimentos como a lobotomia, um "tratamento" que hoje consideramos brutal, mas que era comum naquela época.
Ética e Estigma: Um Passado Esquecido
Nos anos 90, o Conselho de Ética da Dinamarca decidiu que essa coleção poderia ser usada para pesquisas científicas, mesmo sem o consentimento das famílias. Esse momento de reflexão ética trouxe à tona um tema doloroso: o estigma que cercava as doenças mentais no passado.
"Naquela época, se alguém tinha um parente em uma ala psiquiátrica, ninguém falava sobre isso", lembra Knud Kristensen, ex-presidente da Associação Nacional de Saúde Psiquiátrica. O estigma era tão profundo que muitos pacientes passavam suas vidas internados, sem tratamento adequado e, muitas vezes, sem qualquer contato com o mundo exterior. Quando morriam, eram enterrados no cemitério do hospital, e suas histórias se perdiam na escuridão.
O dilema sobre o que fazer com a coleção levou a discussões acaloradas: destruir os cérebros? Enterrá-los ao lado dos pacientes? O impasse foi resolvido quando o Conselho de Ética decidiu que seria um desperdício não aproveitar o potencial científico dos cérebros. Foi uma decisão difícil, mas, nas palavras de Kristensen, "já que fizemos algo imoral ao coletá-los, também seria imoral destruí-los sem utilizá-los para o bem da ciência".
Um Tesouro Científico Inexplorado
Apesar da controvérsia, a coleção de cérebros acabou se tornando uma ferramenta valiosa para os pesquisadores. Afinal, são quase 10 mil cérebros disponíveis para estudos sobre doenças mentais como esquizofrenia, depressão e demência. A quantidade massiva de amostras permite uma análise mais profunda e detalhada, que seria impossível com um número reduzido de cérebros.
Uma das curiosidades mais fascinantes sobre essa coleção é que muitos dos cérebros pertencem a pacientes que nunca foram tratados com medicamentos antipsicóticos. Isso oferece uma oportunidade única para os cientistas compararem cérebros antigos com os de pacientes atuais e observarem as mudanças causadas por esses medicamentos. Para Kristensen, essa é uma janela para o passado, que pode revelar insights sobre os efeitos de tratamentos modernos.
No entanto, mesmo com todo esse potencial, a coleção ainda é subutilizada. Como Kristensen destaca, "a pesquisa custa muito dinheiro, e a maioria dos estudos psiquiátricos é financiada pela indústria farmacêutica, que está mais interessada no desenvolvimento de novos medicamentos do que em descobrir as causas dos transtornos mentais".
O Valor da Ciência no Longo Prazo
Atualmente, diversos projetos estão em andamento para estudar doenças como demência e depressão, mas Nielsen admite que os resultados revolucionários ainda estão por vir. “Esses estudos exigem um compromisso de longo prazo”, ele afirma, ressaltando que pode levar anos até que grandes descobertas apareçam.
Para Nielsen, a decisão de preservar esses cérebros foi um ato de genialidade científica. Ele acredita que, no futuro, talvez daqui a 50 ou 100 anos, os pesquisadores terão uma compreensão muito mais avançada do cérebro humano, e essa coleção será um tesouro científico inestimável.
E, de fato, a grande vantagem dessa coleção é justamente sua vastidão. Em vez de estudar apenas alguns cérebros, os cientistas podem analisar centenas, ou até milhares, de amostras, permitindo uma visão mais abrangente das variações e danos que ocorrem no cérebro humano. Isso é algo que simplesmente não seria possível em outro lugar.
Conclusão: O Legado de Uma Decisão Difícil
A coleção de cérebros da Universidade do Sul da Dinamarca é, ao mesmo tempo, um símbolo do passado sombrio do tratamento psiquiátrico e uma esperança para o futuro da pesquisa científica. O que começou como uma prática questionável e eticamente duvidosa se transformou em uma oportunidade para entender melhor os mistérios do cérebro humano.
Enquanto isso, os cérebros continuam preservados, aguardando pacientemente o dia em que suas histórias — e seus segredos — finalmente serão desvendados.
REFERÊNCIAS: youtube, wikipédia, bbc, ciência hoje