VERDADES INCONVENIENTES

Denúncias contra médicos esbarram no corporativismo

med118/02/2009 - “Estou indo dormir e se aquela paciente que está gravíssima, e que provavelmente vai morrer, tiver algum tipo de complicação ou parada não precisa me acordar não!”. Esta foi a orientação dada por um médico emergencista do Hospital de Urgência e Emergência de Sergipe Governador João Alves Filho (Huse) à equipe de auxiliares de enfermagem que estava trabalhando em seu plantão. Esta orientação foi denunciada recentemente pelas auxiliares à ...

promotora de Justiça dos Direitos à Saúde, Miriam Tereza Cardoso Machado. “E ao que parece, infelizmente, essa não foi uma prática isolada desse mesmo médico. Recebemos diariamente várias denúncias de falta de ética médica durante o exercício da profissão, só que na maioria dos casos as pessoas não nos dão o nome do profissional, principalmente se o denunciante for um colega de profissão, o que impede que algo seja feito. Nem mesmo os familiares das vítimas têm costume de formalizar a denúncia”, comentou a promotora de Justiça. Segundo ela, é comum chegarem reclamações contra médicos lotados no setor de urgência que se furtam, por conta de um cochilo, a prestar o socorro devido, forçando com que a equipe de plantão tente resolver a situação, embora não possuindo a mesma perícia. Miriam Tereza reconhece que o exercício da Medicina é algo extremamente desgastante, principalmente para os que trabalham na área da saúde pública, pois têm que atender a um grande número de pacientes sem as condições de trabalho necessárias e a devida valorização salarial.

“Tudo isso faz com que surja, naturalmente, uma tendência ao profissional ficar menos zeloso, mas é necessário que o médico tenha uma formação pessoal e humana de tal sorte que suplantem esses valores. Sei que muitos agem de maneira ética e correta, mas infelizmente muitos também acabam cansando, e consequentemente repassando isso para o usuário”, comentou a promotora de Justiça.

Prática que infringe a norma

Apenas esse caso citado por Miriam Tereza engloba dois artigos do Código de Ética Médica, criado através da resolução n° 1.246/88, de janeiro de 1988, e publicado no Diário Oficial da União no mesmo mês. De acordo com os artigos 2 e 79 do documento que normatiza a conduta médica, o alvo de toda a atenção desse profissional é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor da sua capacidade laborativa, estando proibido de acobertar erro ou conduta antiética do colega.

Situações reais como essa foram o ponto de partida para as discussões da Comissão Estadual de Revisão do Código de Ética Médica, criada no ano passado atendendo a uma solicitação do Conselho Federal da entidade, cujo pleno, em outubro de 2007, aprovou uma revisão ampla e geral do texto, considerado muito bom tanto no Brasil quanto no exterior. Uma comissão nacional está encarregada de agregar as sugestões enviadas por todas as comissões criadas em cada unidade da Federação. O presidente da comissão sergipana foi o médico homeopata José Vasconcelos dos Anjos, conselheiro titular do Conselho Regional de Medicina em Sergipe (Cremese).

O grupo foi composto ainda por outro integrante do Cremese, por dois representantes da Sociedade Médica de Sergipe, por duas pessoas do sindicato da categoria, por um filósofo, por um promotor de Justiça – neste caso, Miriam Tereza Cardoso – e por um integrante do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, sendo que estes dois últimos componentes não tiveram direito a voto, atuando apenas como observadores e consultores.

erro medico

De acordo com José Vasconcelos, embora muito bom o código brasileiro – composto por 145 artigos que têm uma visão principialista e de respeito à autonomia do paciente – é um dos mais velhos do mundo, já que o da Argentina, por exemplo, data de 2001 e o do Canadá de 2004. O grupo local discutiu temas como a terminalidade da vida, transplantes, pesquisas com seres humanos, consentimento esclarecido, aborto, publicidade médica e a relação desses profissionais com as empresas de equipamentos médico-hospitalares, operadoras de planos de saúde e com a indústria farmacêutica, contato que de acordo com José Vasconcelos se torna muito preocupante a cada dia.

“O que se propõe na atualização não é tanto mexer nos princípios fundamentais, mas atualizá-los de maneira pontual. Aqui em Sergipe, por exemplo, a terminalidade da vida e a legislação penal em vigor no código estão atualizadas, então, acredito que as modificações devem realmente acontecer de uma forma que não altere a essência da estrutura”, declarou Vasconcelos. Ele informou ainda que o texto revisado e com alteração em aproximadamente 1/3 dos artigos atuais, havendo a criação de no máximo cinco artigos, já foi encaminhado para o Conselho Federal.

Revisão modernizará o Código de Ética

Para o filósofo Victor Wladimir Cerqueira Nascimento, membro da comissão estadual, a revisão é mais que necessária por conta das transformações ocorridas ao longo dos 20 anos de vigência do código, a exemplo das novas concepções sobre o que é a vida, do que seja um tratamento terapêutico, do que seja a conduta de um médico diante do paciente. “Todas essas mudanças precisavam ser retomadas no interior do código, que é muito bom, mas que precisa realmente dessa transformação, pois acredito que temas fundamentais como a eutanásia, o que é a vida, o que é estado patológico e estado normal, o que é consciência, responsabilidade e liberdade tenham de ser, ainda, profundamente discutidos”, comentou Victor Wladimir Cerqueira.

O filósofo, que tem como princípio aplicar seus conhecimentos tendo como ponto de partida os casos reais, caminhando, portanto, não pelo campo da abstração, mas do pragmatismo, disse que esse estudo também serviu para mostrar que apesar do Código de Ética Médica do Brasil ser sim um dos mais modernos do mundo, não deixando nada a desejar quando comparado com o de outros países, não significa dizer que a ética médica desenvolvida pelos brasileiros esteja correta.

Segundo Victor Wladimir Cerqueira, a principal dificuldade encontrada na hora da revisão do código em vigor foi saber dosar as concepções abstratas de bem e mal, de certo e errado, com as práticas cotidianas que já estão consolidadas. Para ele, uma das coisas mais complicadas de serem ditas é: até que ponto uma conduta que seria abstratamente boa ou correta pode ser aplicada, numa prática cotidiana que já está repleta de vícios, de suas próprias regras?

Falou ainda que os maiores momentos de “conflito” durante os encontros do grupo para a revisão do documento apareceram quando entraram na “baila” questões referentes ao corporativismo da classe e a relação entre médicos e operadoras de planos de saúde, empresas que acabam não respeitando a liberdade de atuação desses profissionais.

“O corporativismo é um tema especialmente problemático, principalmente entre os sindicatos e os conselhos. A principal questão é: como denunciar um amigo, um colega de profissão? Por que denunciá-lo e até que ponto vale essa coisa do coleguismo, do corporativismo, que até hoje possui um valor simbólico muito grande para esses profissionais? Outro ponto que gerou muita polêmica foi o relacionado aos planos de saúde, pois querem dizer tudo o que o médico tem de fazer e com qual material tem de trabalhar, retirando a liberdade do profissional em adotar a melhor terapêutica para o paciente. Chegamos à conclusão que a saúde do paciente, como tudo mais, é apenas capital, dinheiro. Não se discute a Medicina tendo como base a vida humana, mas valores, dinheiro”, pontuou o filósofo.

Fonte: JC on-line - Texto: Andréa Moura