VERDADES INCONVENIENTES

A TV Antieducativa - Parte 4

tv 295.19 Condicionamento e não informação - Como vimos no capítulo 3, o estado normal de um telespectador é de sonolência, ou semi-hipnótico, e tudo o que é visto e ouvido fica essencialmente gravado no subconsciente ou mesmo no inconsciente profundo, não podendo ser lembrado conscientemente. Naquele capítulo, foi descrita uma experiência que qualquer um pode fazer para comprovar isso: deixar alguém assistir o noticiário nacional e perguntar depois quais notícias assistiu; em geral as pessoas lembram de pouquíssimas notícias. Com isso, a TV acaba condicionando, muito mais do que informando, pois a aquisição de informação exige que ela permaneça no consciente, possa ser lembrada e se possa refletir sobre ela e criticá-la. No item 5.18 foi mostrado como a TV é o veículo ideal para a propaganda, que justamente procura condicionar a pessoa a ter vontade de comprar algum produto.

Algumas pessoas dizem que não tem tempo de ler o jornal, e 'informam-se' vendo um noticiário na TV. Em primeiro lugar, quem não tem tempo de ler diariamente um jornal está com algo profundamente errado na vida. Em segundo, é importante saber lembrar que "uma foto diz mais do que 1.000 palavras". De fato, vejam-se os dizeres em baixo de qualquer foto de jornal ou revista: apenas uma linha, do tamanho horizontal da foto. A TV mostra uma sequência de fotos, de modo que não necessita de muitas palavras. De fato, li em algum lugar que o texto falado nos noticiários da TV equivalem, em quantidade de palavras, a duas colunas de jornal. Isso é informar-se?

A imprensa é o veículo de comunicação que mais preserva a liberdade e a individualidade do receptor, pois ele pode ler no ritmo que quiser, repetir a leitura, interrompê-la para refletir sobre ela, etc. E, principalmente, durante ela ele é obrigado a prestar atenção, criar imagens mentais e associar conceitos, justamente o que não se passa ao assistir TV. Ora, um condicionamento vai contra a liberdade. Portanto, a TV é contrária à liberdade.

É lógico que alguma informação pode ser guardada pelo telespectador, mas ela é ínfima se comparada com a leitura atenta de um texto sobre o mesmo assunto. Obviamente, a TV apresenta imagens em movimento, o que um livro ou jornal não pode fazer – a menos do uso de sistemas multimídia, com texto, imagens e filmes. Mas em quantos casos é importante complementar o texto com imagens e filmes? Ou será que se trata mais de um caso de atrair o telespectador, do que a necessidade de mostrar-lhe imagens?

Resumindo: a TV em geral condiciona, não informa.

É atribuída a Michael Garrett Marino a frase "Especialista é a pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, até saber tudo sobre nada." Minha paráfrase é "Telespectador é a pessoa que sabe cada vez menos sobre cada vez mais, até saber nada sobre tudo."

5.20 Paralisia mental

 

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Como vimos nos capítulo 3, nos itens 5.18 e no anterior, a TV 'desliga' o pensamento consciente. Ora, ele é essencial para levar à compreensão de um objeto ou fenômeno visto, por meio de um pensamento ativo. Acostumando-se a ver as imagens e não pensar sobre o que está vendo, o telespectador começa a perder a curiosidade de procurar explicação para coisas que não compreende. Um exemplo típico é o fato de pouquíssimas pessoas compreenderem por que um avião voa. A explicação é muito simples, e facilmente demonstrável: basta encostar uma folha de papel fino embaixo do lábio inferior e soprar por cima dela – ela vai levantar, pois o ar em cima da folha está com velocidade maior do que embaixo, como na asa de um avião, cuja superfície superior é mais curva, e portanto maior do que a inferior. Ora, todos veem aviões voando, por que quase ninguém tem a curiosidade de se perguntar o porquê disso, e procurar a explicação?

Há duas possibilidades que me ocorrem para explicar esse fato. As máquinas estão cada vez mais complexas, e as pessoas acham que não podem compreendê-las. Esse é, por exemplo, o caso da injeção eletrônica dos automóveis – antes dela, um mecânico ou qualquer pessoa podia compreender perfeitamente todo o funcionamento de um motor a explosão. Aliás, qualquer máquina digital tem a característica de não adiantar ser desmontada para se compreender o seu funcionamento: ao abrir-se um circuito integrado (chip), destroem-se seus circuitos, e nem seria possível deduzir o que fazem examinando-se seu interior. Uma outra possibilidade pode ser o fato de, ao ver TV, o telespectador normalmente não poder pensar e, com isso, não procurar mais explicações para os fenômenos que vê. Isso é uma verdadeira paralisia mental, que é ruim nos adultos, mas é trágica em crianças e adolescentes, por justamente estarem formando sua mente, e deveriam aso poucos desenvolver a ânsia de compreender o mundo.

A curiosidade para compreender conceitualmente é uma característica essencialmente humana. Se essa curiosidade é diminuída, o ser humano é diminuído em sua humanidade.

5.21 Indução de mentalidade de competição

 

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É um fato que a TV transmite muita competição. De um lado, trata-se da transmissão de competições esportivas; de outro, a competição capitalista de um produtor ou empreendedor contra outro, ou de pessoas que tiveram sucesso competindo. Com isso, ela induz a mentalidade de que competição é benéfica. Ora, como já foi visto em 5.4, qualquer competição é antissocial. A situação é terrível para crianças e adolescentes que, por estarem em formação, passarão a achar que competição é algo natural. De fato, ela é natural, mas o ser humano não é um ser puramente natural. Ele pode ser altruísta, o que não ocorre nos animais. De fato, animais são simplesmente naturais: sempre agem por instinto ou pelo condicionamento sofrido do meio ambiente, de modo que não existe altruísmo entre eles. Um animal (e também um vegetal) está em uma permanente e inglória luta pela sobrevivência de si mesmo e da espécie. Uma ação verdadeiramente altruísta deve ser feita em plena consciência e em liberdade, e isso só o ser humano pode fazer. Como afirmei no item 5.18, uma de minhas hipóteses de trabalho fundamentais é que o ser humano pode ter livre arbítrio.

Portanto, a TV educa principalmente para a competitividade, e não para a cooperação.

5.22 Destruição da vida familiar

 

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Como vimos no capítulo 4, o telespectador normalmente está em um estado de sonolência, semi-hipnótico. Ora, se toda a família está vendo TV, cada um fica nesse estado, e não há mais interação entre as pessoas. Como vimos em 5.13, os pais estão falando cada vez menos com seus filhos. O extraordinário libelo contra a TV que é o livro de Neil Postman (1987), tem em sua capa a figura de uma TV em primeiro plano, e atrás dela, sentados, os dois pais e uma filha, bem como uma criança no colo do pai. Estão todos sem cabeça, isto é, não pensam e não falam, e se vê principalmente o tórax de cada um, indicando que as emoções estão ativas.

A destruição da vida familiar ainda é pior se há vários aparelhos de TV na residência, e cada membro da família usa um para ver seu programa ou DVD favorito.

Em 5.3 mencionei o fenômeno da 'babá eletrônica'. De fato, o excelente estudo da Kaiser Family Foundation, já citado em 5.1 e 5.18, relata que nos EUA 84% das famílias com filhos entre 6 meses e 6 anos tem dois ou mais televisores, e 24% com quatro ou mais. Esse estudo revelou que muitos pais dão um televisor para seus filhos (parece-me que, em geral, o aparelho velho quando compram um novo para si), para que os primeiros possam ver seus programas preferidos. É óbvio que aí existe ainda mais separação dos membros da família do que todos vendo um só aparelho. Do ponto de vista das crianças e adolescentes, o trágico é que os pais deixam de fazer atividades específicas com eles, tais como brincar, ler, conversar, contar histórias, passear, jogar bola, etc.

5.23 Falta de sono saudável e de ritmo

 

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Um sono saudável é absolutamente essencial para a saúde e desenvolvimento harmônico de crianças e adolescentes. Depois de ver TV antes de dormir, como as crianças poderiam ter um sono saudável, tendo absorvido milhões de imagens e tendo sofrido uma quantidade enorme de sobressaltos devido à invariável violência e tensão transmitidos por ela? Antes de irem dormir, as crianças necessitam de um período de calma, da maior tranquilidade possível, fazendo-se assim uma transição da agitação diurna incentivando fortemente a consciência, para a total inconsciência do sono profundo. Nesses termos, pior do que verem TV antes de irem dormir, só mesmo jogando vídeo games, mas este artigo não trata deles.

Thompson e Christakis (2005) fizeram o primeiro estudo estatístico para verificar, em crianças de 4 a 35 meses de idade, a correlação entre assistir muita TV e ter irregularidade no sono: "Estudos mostraram que assistir TV ou video tape é associado com ir tarde para a cama e distúrbios do sono entre crianças em idade escolar e adolescentes. Um estudo longitudinal [isto é, levantando dados em várias idades para os mesmos sujeitos] demonstrou que níveis altos de assistir TV durante a adolescência pode levar ao desenvolvimento de problemas de sono na idade adulta jovem." Para seu estudo, eles usaram como critério horários irregulares de sono, seja na sesta quanto à noite. Tinham horários irregulares de sono na sesta 34% das crianças, e 27% à noite. "Encontramos o fato de que assistir TV em crianças pequenas é associado com um risco maior de haver um horário irregular para o sono. Isso foi independente de muitos outros fatores que poderiam afetar o horário de dormir de uma criança, como socioeconômicos e demográficos, saúde materna e interações familiares, assim como habilidade paterna de manter horários regulares para as refeições. Esses resultados são potencialmente importantes, por que um horário rotineiro para o sono é um componente crítico para garantir um bom sono [são dadas 5 referências]. Horários irregulares podem levar a um tempo de sono inadequado e a problemas de sono. ... Consequências para as crianças podem incluir problemas de humor [mood], comportamento, aprendizado, e resultarem em saúde precária."

Dei-me ao trabalho de transcrever vários trechos desse artigo pois me causa profundo dó ver crianças sem horários regulares para refeições e para ir dormir, isto é, sem ritmo. O ideal para dormir é seguir o próprio ritmo do dia e da noite, como os animais que não são notívagos sabiamente o fazem, por instinto. Eu e minha esposa, para nossos 4 filhos, bem como minhas 3 filhas para meus 6 netos, sempre fizemos questão absoluta de manter horários relativamente rígidos para refeições e para ir dormir, estabelecendo com isso vários ritmos diários. Nesse sentido, Thompson e Christakis escrevem: "... horários irregulares de refeições foram associados com horários irregulares de sestas e de ir dormir à noite", isto é, quando há irregularidades de horário, elas são normalmente gerais, em todos os aspectos da vida familiar.

Crianças pequenas necessitam de ritmo, adoram repetições e rituais, como eu já discorri no item 5.18. Vou dar aqui um depoimento pessoal. Quando as nossas crianças pequenas iam para a cama à noite (a menos de casos excepcionais, nunca após as 20h00, pois como já relatei, o sono durante a noite é muito mais saudável do que quando já está claro, pela manhã), nós sempre juntávamos toda a família presente em casa, acendíamos uma vela para cada criança, fazíamos uma oração (ecumênica – ver o Apêndice), cantávamos uma pequena canção bem calma (sempre a mesma, também no Apêndice), desejávamos boa noite com um beijo, e aí apagávamos as velas. Minhas filhas fazem o mesmo com meus netinhos. Esse ritual era tão importante para nossos filhos que o maior castigo que podíamos ameaçar era de não cumpri-lo ao irem dormir. Essa nossa cerimônia de ir para a cama servia de excelente passagem da agitação e impulsos do dia, que continuamente incentivam os sentidos e a consciência, para a calma e a total inconsciência do sono profundo noturno. É interessante notar que nossas 2 filhas mais velhas sempre faziam questão de acompanhar o ritual dos 2 menores (a diferença de idade da 2ª para o 3º é de 4 anos). É reconfortante ver pesquisadores, como Thompson e Christakis citados logo acima, confirmando aquilo que tínhamos deduzido conceitualmente. Só que nós já o fazíamos há mais de 40 anos atrás. Aliás, ritmos e rituais eram antigamente parte integrante da educação de crianças; infelizmente, perderam-se tanto a intuição de que isso é uma necessidade, como as tradições nesse sentido. Porém, uma compreensão profunda do que significa a infância (que era o nosso caso) leva a essas atitudes. Para os que não a tem, espero que os artigos científicos como o de Thompson e Christakis mostrem o que deve ser feito.

Obviamente a TV destrói o ritmo da família. Toda hora é hora interessante para ver TV, inclusive o das refeições e de ir dormir.

5.24 Massificação

 

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O telespectador está vendo algo na tela que não é transmitido especialmente para si próprio, mas para para uma quantidade enorme de pessoas. Assim, ele é tratado pelos produtores dos programas como um ente abstrato, sem individualidade. Em outras palavras, o telespectador é massificado. Ele vai sendo condicionado da mesma maneira que milhões de outros vendo o mesmo programa, por exemplo a gostar das mesmas coisas e a desejá-las.

Poder-se-ia objetar que a leitura também é um meio de comunicação de massa: um livro é o mesmo para todos os seus leitores. Acontece que a situação é totalmente diferente; como vimos no capítulo 3, a mente do leitor está sempre muito ativa, pois ele tem que criar interiormente as imagens do que está sendo descrito, ou associar os conceitos do que ele lê. No caso da TV, como vimos naquele capítulo, devido à avalanche de imagens o telespectador não consegue criar suas próprias, diferentes das que está assisitindo, mas associadas a elas, e nem consegue associar conceitos conscientemente, pois esses tipos de pensamento são muito lentos.

5.25 Indução de impulsividade e negatividade

 

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Vimos que a TV atinge principalmente as emoções. Em termos delas, o ideal é que o indivíduo se conscientize do que está sentindo, mas não seja levado pelos seus sentimentos ao agir. Uma pessoa age tanto mais humanamente quanto mais reflete, antes, sobre as possíveis consequências de seus atos. Os animais não tem essa capacidade: eles agem sempre segundo seus instintos e condicionamentos. Agindo sobre os sentimentos, e abafando o pensamento consciente, a TV acaba por induzir a pessoa a agir segundo suas emoções. Isso é particularmente grave com crianças e adolescentes, que estão desenvolvendo sua capacidade de refletir e refrear seus impulsos. Isso não significa que a pessoa torne-se fria, insensível; deve-se prestar atenção aos sentimentos, e talvez até segui-los em uma ação, mas o importante é tomar essa decisão conscientemente. Por exemplo, uma pessoa pode ser apresentada a outra, e achar à primeira vista que esta última é extremamente antipática. No entanto, esse sentimento não deveria orientar as ações da primeira, pois ele pode ser devido a associação com outra pessoa parecida que fez algum grande mal à primeira. Assim, deve-se procurar conversar com ela, e é possível que essa primeira impressão desapareça, dando lugar a uma simpatia. Note-se que antipatia e simpatia são sentimentos típicos, mas mais básicos ainda são os de atração e repulsa. O contrário da impulsividade é a serenidade.

Como vimos no capítulo 4 e no item 5.4, a TV transmite principalmente o que é negativo, pois é isso que atrai o telespectador e atinge mais seus sentimentos. Com isso, ela acaba por induzir uma negatividade, isto é, procurar tudo o que é negativo em qualquer coisa. Aliás, isso é típico de uma atitude excessivamente crítica. Isso é particularmente ruim com crianças, pois elas vêm ao mundo esperando um mundo bom, e não mau e negativo. Isso deve provocar provavelmente muitos problemas psicológicos nelas, como frustração e medo. Além disso, um indivíduo com positividade, isto é, aquele que sempre procura ver o lado bom das coisas (não existe praticamente nada 100% mau ou 100% bom no mundo), é um indivíduo com maior coragem e confiança para enfrentar as agruras da vida, e provavelmente será também mais criativo.

5.26 Indução de admiração pelas máquinas

 

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A TV envolve altíssima tecnologia. Com isso, há uma tendência natural de os programas salientarem as maravilhas das máquinas, e serem pouquíssimo críticos em relação aos seus aspectos negativos. O filósofo Heidegger já havia dito que um dos maiores problemas da tecnologia é ela dar a impressão de ser neutra: "... nós nos entregamos a ela [we are delivered to it] da pior maneira possível quando a encaramos como algo neutro." (1977.) Nenhuma máquina é neutra, todas produzem algum efeito negativo. Só se poderá colocar as máquinas em seu devido lugar se se tiver conhecimento de seu funcionamento e dos problemas que elas causam, e um relacionamento objetivo com elas. O que está acontecendo é justamente o contrário, isto é, o ser humano está usando as máquinas sem consciência e sendo dominado por elas. A esse respeito, veja-se o meu ensaio "A missão da tecnologia" (Setzer 2007). Como sempre, essa questão de endeusamento das máquinas é particularmente ruim no caso de crianças e adolescentes, pois estão formado sua mentalidade e visão de mundo e são muito mais abertas a ele do que os adultos. Cito aqui um caso terrível: o brinquedo Tamagoshi, que fazia o papel de um animal do qual a criança devia cuidar, apertar um botão para "dar comida", "dar água", etc. Com isso, cria-se uma verdadeira aberração: um amor pelas máquinas.

A propósito, a rigor nada é neutro para o ser humano. Por exemplo, a leitura deste artigo deixará o leitor em um estado um pouco diferente do que tinha antes de lê-lo. Isso é devido ao fato de o ser humano incorporar todas as suas vivências, o que deve levar as pessoas a tomarem extremo cuidado com o que apresentam para as crianças, e lembrarem que todas as imagens vistas na TV ficarão gravadas para sempre no subconsciente ou no inconsciente, obviamente influenciando as atitudes mais tarde.

5.27 Indução de mentalidade materialista

 

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Este item não fará nenhum sentido a alguém que se considera materialista – isto é, tem a fé ou adota a hipótese de que existem apenas processos, matéria e energia físicos no universo, particularmente nas plantas, animais e, em especial, no ser humano. Ele é dirigido às pessoas que se consideram espiritualistas, isto é, admitem, como hipótese de trabalho (minha atitude pessoal), ou como fé, que existem processos que não podem ser reduzidos a processos físicos. Para maiores detalhes, veja-se meu artigo "Ciência, religião e espiritualidade".

A TV é um produto de altíssima tecnologia, incorporando vários avanços da ciência. Com isso, os seus programas em geral procuram glorificar os avanços científicos e tecnológicos. Acontece que a ciência que é feita hoje em dia é essencialmente materialista. Assim, crianças e adolescentes acabam sendo induzidos pela TV a se tornarem materialistas. Há dois problemas em relação a isso.

Em primeiro lugar, toda criança pequena tem uma religiosidade natural. Pelo conteúdo dos programas da TV, essa religiosidade é destruída. Por exemplo, tomemos a linda imagem do Papai Noel. Ela deveria ficar no imaginário infantil como algo sobrenatural, e nunca ser representada, seja na tela da TV, seja por uma pessoa fantasiada na figura grotesca que se vê na época no Natal, em geral associada com consumismo. Vou citar aqui um caso pessoal. Quando eu tinha 10 anos, meus pais mudaram-se para uma outra casa. Nesta, havia uma escada de madeira, que rangia à noite, talvez pela mudança de temperatura ou de humidade. Pois eu tinha certeza de que eram anjinhos subindo ou descendo a escada... Qual a criança de 10 anos de hoje que ainda tem essa imaginação e religiosidade?

No livro de Richard Dawkins The God Delusion (2007, traduzido erradamente por Deus, um Delírio), o capítulo 9 combate o ensino religioso para crianças, inclusive alegando que isso lhes impinge uma religiosidade que as marcará pelo resto da vida. Como chamei a atenção em minha extensa resenha sobre esse livro, isso é um erro crasso.

Ele mesmo confessa que teve um ensino religioso quando criança, o que não o impediu de se tornar totalmente materialista. Ele relata vários casos de exageros religiosos que foram praticados com crianças, inclusive com a tradicional ameaça de elas irem para o inferno se não se comportarem. É óbvio que estou totalmente de acordo com ele nesses casos. A existência desses lamentáveis casos, os únicos analisados por Dawkins, não invalidam a necessidade de uma criança ser educada em um ambiente de religiosidade. Mas o importante é que a TV em geral acaba com qualquer sentimento de religiosidade. É uma lástima que pessoas que se dizem religiosas não percebem isso – a menos de algumas correntes que, intuitivamente, percebem que há algo de profundamente contraditório entre espiritualidade e TV.

Em segundo lugar, a ciência materialista peca por ter um preconceito: o de que não existe nenhum processo no universo que não seja físico. Esse preconceito limita a própria pesquisa científica. Vou dar aqui um exemplo trivial desse fato. É tradição caipira que, para se fazer um telhado de sapé, este deve ser cortado no quarto minguante, pois senão 'pega bicho', isto é, fica mais sujeito a insetos, fungos, etc. É muito provável que nenhum cientista ponha-se a testar essa tradição, que talvez tenha centenas de anos e pode ser até originária de nossos índios. O cientista logo diria: "Isso é uma imensa bobagem, como a Lua pode influenciar as plantas dessa maneira?" Com isso, deixa-se de pesquisar algo que, eventualmente, poderia chegar a ser confirmado, o que ajudaria na colheita do melhor sapé para fazer telhados. Se, por outro lado, essa tradição não for confirmada, ótimo, ter-se-á a informação preciosa de que se tratava de uma crendice sem fundamento prático, e não deveria ser seguida. Lembremos que a influência dos astros sobre os seres vivos e o ser humano pertence à tradição mais longínqua da humanidade. Quem sabe há algo por detrás disso, e que deveria ser investigado por cientistas sem preconceitos. Um exemplo disso é a pesquisa do cientista britânico Lawrence Edwards, que estudou matematicamente a influência do alinhamento de planetas sobre a forma de brotos de plantas, com resultados surpreendentes; ver, por exemplo, o artigo de Jay Kappraff (sem data).

A ciência enfrenta muitos problemas, mas em geral os programas de TV que a abordam só mostram seus triunfos, e nunca seus fracassos. Além disso, em geral aquilo que deveria ser apresentado como mera teoria é apresentado como verdade. Alguém já viu algum programa de TV que tratasse da teoria da evolução neodarwinisita apenas como ela é, uma teoria, e não um fato científico? Ela está repleta de problemas, começando o fato de não se ter acompanhado a evolução há dezenas de milhares ou milões de anos atrás, passando pelos elos perdidos (por exemplo, há vários modelos conflitantes de aparecimentos e descendências de animais), passando pelo problema do aparecimento da fala humana, que não tem explicação evolutiva satisfatória, como mostrou muito bem o evolucionista Ian Tattersal (2001), ao escrever: "... não podemos atribuir o advento das capacidades cognitivas modernas simplesmente como a culminação de uma tendência de desenvolvimento do cérebro ao longo do tempo. Alguma coisa ocorreu além de um polimento [buffing-up] do mecanismo cognitivo. ... temos que concluir que o aparecimento da linguagem e os seus correlatos anatômicos não foi impulsionado por seleção natural, por mais que essas inovações benéficas possam parecer significantes a posteriori [in hindsight]." No entanto, quando a TV fala de evolução darwinista, em geral (talvez sempre) tenta passar a imagem de que ela é uma verdade. Isso é particularmente pernicioso para adolescentes, que não deveriam ser educados para terem preconceitos e crenças. Tenho a impressão de que a TV impinge nos jovens uma profunda admiração pela ciência, uma verdadeira crença na mesma.

Falando de adolescentes, vou divergir um pouco do tema deste artigo, e abordar rapidamente o problema educacional do embate entre criacionismo bíblico e darwinismo. O primeiro é uma imagem, o segundo uma teoria conceitual. Ora, o que crianças necessitam até uns 8 anos de idade, é justamente de imagens, e não de conceitos. Portanto, até essa idade é absolutamente correto dar-se o criacionismo bíblico, e é absolutamente inadequado dar a teoria da evolução – aliás, a criança nem tem a capacidade de entender a distinção entre uma teoria e um fato científico! Ao contrário, no ensino médio, o que um jovem procura é compreensão, e não se satisfaz com imagens, com historinhas. Nessa idade o correto é dar a teoria darwinista, mas como teoria que é, apresentando também os seus problemas. A respeito destes, recomendo o interessante artigo do biólogo Craig Holdrege mostrando que a idéia comum de que as girafas esticaram o pescoço pois as que alcançavam folhas mais altas tinham mais chance de sobreviver é uma falácia (Holdrege 2003). Aliás, note-se nesse artigo o enfoque holístico e qualitativo, incomum em artigos científicos. Isso nos leva ao próximo ponto.

Um dos problemas da ciência é que o método científico só trata de quantidades, aquilo que pode ser medido, e nunca de qualidades imponderáveis. Ainda um outro problema é que o método científico atual é reducionista. Obviamente, retirando-se uma célula de um organismo vivo e examinando-se-a em separado, ela não é mais a mesma do que quando estava dentro dele; certamente perdeu várias de suas funções. Assim, esse reducionismo provoca a perda da visão do todo, e acaba por chegar a conclusões apenas parciais. Finalmente, cada um pode vivenciar dentro de si próprio fenômenos que são 'ocultos' à pesquisa científica, como os impulsos próprios de vontade, as sensações e sentimentos, e o pensamento. Por exemplo, tente o leitor provar a alguém que está tendo algum sentimento ou está pensando em algo. (Note-se que não se sabe como esses processos ocorrem no ser humano!) Infelizmente, esses problemas raramente são apresentados na TV, o que acaba dando uma idéia errada do que é a ciência e criando uma mentalidade cientificista, isto é, a fé ou crença na ciência.

Quero deixar bem claro que não sou contra a ciência e a tecnologia. Por exemplo, se o fosse, não teria meu próprio site, não seria o webmaster de uma sociedade, e não me teria tornado rádio-amador classe 'A' (infelizmente a Internet acabou com o radioamadorismo, mas ainda conservo meu indicativo, PY2EH). Sou contra o mau uso da tecnologia e da ciência, e a parcialidade desta última.

Quando a TV transmite algo espiritual, isso é feito em programas religiosos, por exemplo na transmissão de cultos, ou propagando idéias ou fenômenos sobrenaturais sensacionalistas. No primeiro caso, parece-me que não há religiosidade profunda, pois se a houvesse, não se utilizaria um meio que restringe a liberdade e a consciência. Ao contrário, a transmissão de cultos religiosos pela TV parece-me ser uma prova do materialismo que grassa por várias correntes religiosas. Quanto ao sensacionalismo sobrenatural, pode-se perfeitamente ver que ele é apresentado de forma totalmente materialista, como por exemplo o filme ET de Spielberg. Enfim, uma mensagem àqueles que se consideram espiritualistas: não deem a seus filhos acesso à TV e nem aos outros meios eletrônicos, pois eles em geral induzem uma visão de mundo materialista.


6. Educação

 

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Neste capítulo é apresentada inicialmente uma caracterização do que deveria ser a educação, com explicações sobre os termos dessa caracterização, para em seguida serem expostas diretivas no lar e na escola no sentido de se prover uma educação adequada, e do que não deve ser feito.

6.1 O que é educação?

Educar é orientar adequadamente a criança e o jovem para que se desenvolvam sadiamente do ponto de vista físico, fisiológico, emocional e mental, bem como desenvolvam habilidades físicas, sociais, artísticas, artesanais e intelectuais, e adquiram cultura e conhecimento para poder, na idade adulta, colocar livremente essas habilidades em prática, de modo que possam, por si próprios, encontrar seu caminho e atuar socialmente de maneira positiva.

Note-se que fiz questão de formular essa minha caracterização dando ênfase ao fato de que, no fundo, a criança e o jovem educam-se; pais e mestres são apenas instrumentos na autoeducação. Vou explicar alguns trechos dessa caracterização.

Usei a palavra 'adequadamente' pensando no fato de que a educação deve seguir a maturidade global da criança e do jovem. Isso significa que ela deve levar em conta o estágio de desenvolvimento físico, fisiológico, psicológico e psíquico. Um contraexemplo claro de inadequação é colocar a criança em contato com a sexualidade antes da puberdade. Existe uma pedagogia que, em meu entender, é a que mais é orientada para essa adequação: é a Pedagogia Waldorf, já mencionada no item 5.14. Para uma boa introdução a ela, ver o livro de Rudolf Lanz (1998).

Na Pedagogia Waldorf, existe uma conceituação detalhada sobre o desenvolvimento conforme a idade, e o ensino é totalmente orientado por ele. Vou dar aqui uma das conceituações mais gerais e importantes, a dos períodos de 7 anos, ou 'setênios'. Aproveitarei para expor algumas da características dessa pedagogia, pois é a melhor que conheço, sob vários pontos de vista, servindo portanto de modelo para o que considero o ideal no ensino.

Segundo a Pedagogia Waldorf, no primeiro setênio (de 0 a aproximadamente 7 anos) a criança é um ser essencialmente volitivo, isto é, desenvolve sua vontade, que a domina. De fato, se uma criança dessa idade quer alguma coisa, só há uma maneira de fazê-la não a querer: desviar sua atenção. Não adianta dar explicações conceituais, como "Daqui a pouco será hora do almoço, você não deve tomar sorvete agora, poisa perderá o apetite". A vontade está intimamente ligada com as ações, que só são executadas a partir de uma realização, em geral inconsciente, da vontade. De fato, a criança pequena é também um ser de ações: não pára de correr, de fazer, de se mexer. Isso é essencial, pois assim ela desenvolve a musculatura e a coordenação motora, cuja atividade, pelas vias nervosas aferentes, ativa determinadas áreas cerebrais. Enquanto desperta, uma criança só deveria parar e ficar quieta sem fazer nada se ouve uma história; nesse momento, ela entra numa atividade também intensa, mas interior: a sua imaginação cria as imagens do que ela está ouvindo, como já foi descrito no item 5.3. A imaginação está ligada a uma outra característica da criança no primeiro setênio: a fantasia. Toda criança dessa fase, que não foi deturpada em seu desenvolvimento, é extremamente fantasiosa, inventando brincadeiras com qualquer objeto, que para ela adquire a forma que ela imaginar. Assim, uma cadeira pode virar uma casa, um castelo, um barco, um automóvel, uma jaula, etc. Nessa idade, a criança é essencialmente animista, isto é, imagina que qualquer coisa tenha vida, como no exemplo dado em 5.15, de o pai censurar uma cadeira em cuja perna a criança tropeçou. Como já foi citado em 5.27, uma característica essencial das crianças nesse período é de terem uma religiosidade inata, que deveria ser respeitada e cultivada. Toda criança vem ao mundo com duas características essenciais: esperando que ele seja bom, e com uma confiança irrestrita nele. Qualquer ação que mostre uma ruindade no mundo, e que ele não é digno de confiança, frustra profundamente a criança pequena. Por isso jamais se deveria desejar despertar a crítica em uma criança dessa idade.

Finalmente, dois aspectos absolutamente essenciais do ponto de vista da educação: no primeiro setênio, a criança aprende brincando e imitando. Como vimos em 5.12, a criança até os 7 anos aprende essencialmente por imitação. Esse aprendizado por imitação (que deve ser a tônica da educação no lar e no jardim de infância que, infelizmente, transformou-se em 'pré-escola', 'educação infantil', etc.), corresponde a uma fase em que a criança está formando conceitos intuitivos do mundo, isto é, está aprendendo a associar, por meio de um pensar intuitivo, semiconsciente, a percepção ao conceito relacionado com o objeto percebido. Isso significa que somente a realidade, e a mais bonita e boa possível, deveria ser mostrada à criança. Quando for algo fantasioso, como por exemplo um livro com figuras, deveria ser sempre artístico, nunca grosseiro, grosteco, amedrontador, agressivo. Um contra-exemplo típico é o dos dinossauros já citados no item 5.5; repetindo, o que pais podem ter na mente dando monstros apavorantes para suas crianças brincar, ou mesmo ver em figuras?. Quanto mais rudimentar o brinquedo, melhor, pois ela poderá exercer a sua fantasia e imaginar algo real por detrás dele. Um caso típico é o da boneca de pano onde os olhos são dois pequenos círculos, o nariz uma pequena protuberância, não havendo necessidade de ter uma boca desenhada; assim são as chamadas 'bonecas Waldorf', usadas nessa pedagogia. Com esse brinquedo, a criança pode imaginar essa boneca dormindo, chorando, rindo, etc., o que é impossível com uma boneca de plástico com o rosto imitando perfeitamente um rosto humano, sempre sorrindo, etc. Além disso, compare-se a sensação táctil que se tem com uma boneca de pano, e o seu cheiro, com os de uma de plástico, para se entender como os brinquedos de hoje são, em geral, uma aberração, da qual a Barbie é a mais horrível demonstração. Como uma criança pode brincar com a Barbie de nenê, embalando-a, etc.? Afinal, uma das brincadeiras essenciais de uma criança com bonecas é imitar o que a mamãe faz com ela própria ou com seus irmãozinhos nenês! Uma coisa que me choca profundamente pensando nas crianças que brincam com elas, além da forma sensual dessas bonecas e as pernas excessivamente longas (já ouvi falar que isso não corresponde ao biotipo típico das brasileiras, o que provoca frustrações nas nossas meninas que, obviamente, querem imitar a boneca), são as articulações mecânicas de braços e pernas, uma mecanização do ser humano. Péssimos são também os brinquedos elétricos ou eletrônicos, como os carrinhos e robôs com controle remoto; nesse caso, quem brinca é o próprio brinquedo, pois a criança limita-se a apertar botões. Além disso, nesses brinquedos também não há nada a ser imaginado. Em lugar de trenzinho elétrico, meus filhos brincaram e meus netos brincam com trenzinhos de madeira sobre trilhos (da marca Brio ou compatível).

Na Pedagogia Waldorf, o aprendizado da leitura e da escrita jamais se dá durante o jardim de infância, onde não há nenhum ensino formal. De fato, as letras latinas são símbolos abstratos, sem nenhum significado intrínseco, e seu aprendizado apela para o intelecto. No 1º setênio, isso significaria roubar da criança forças que ela deveria estar dedicando ao seu desenvolvimento físico e fisiológico, o que provavelmente provocará distúrbios mais tarde. É muito triste ver hoje até creches ensinando a ler, provocando uma terrível intelectualização precoce. Será que alguém acha que uma criança que aprendeu a ler aos 4 anos de idade terá lido por isso mais livros quando chegar aos 18 anos? Isso dependerá exclusivamente do estímulo posterior.

Passemos ao segundo setênio (aproximadamente 7 a 14 anos). Segundo a conceituação e a prática da Pedagogia Waldorf, é essa a época em que a criança torna-se madura para começar a aprender algo formalmente – e a primeira coisa formal é a leitura e a escrita. No entanto, é necessário entender que a transição do primeiro para o segundo setênio não é abrupta, mas sim vagarosa. Assim, aprender a ler deve ser um processo muito lento e ainda cheio de fantasia. Para isso, a Pedagogia Waldorf recomenda que o professor comece contando uma história para cada letra. Peter Bieckark, que foi o professor de classe (ver abaixo) de minha segunda filha, introduziu como primeira letra o G, contando a historia de um gnomo cujo nome era Gnut. O Gnut foi então introduzindo cada letra nova; por exemplo, ele morava numa montanha, em forma de M, e apresentou-a às crianças com lindos desenhos coloridos no quadro-negro. Ele também apresentou uma amiguinha que ele tinha, a borboleta B. A vivência de minha filha do aprendizado das letras na 1ª série foi tão intensa, que até hoje, com 40 anos, ela se lembra das historinhas – e lamentou-se que sua filha mais velha, que acabou de entrar na 1ª série em uma Escola Waldorf, não teve uma história tão bonita para as letras. Vemos aqui uma característica essencial da Pedagogia Waldorf: a vivência do que é ensinado, ao contrário das outras escolas, onde o ensino é essencialmente intelectual. Na 3ª série, um motivo central das aulas são as profissões. Pois na Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo é uma tradição que as crianças aprendam nessa série como se faz pão (nas aulas de jardinagem, plantaram trigo, colheram-no e depois viram como ele é moído), não teoricamente, mas fazendo-o. Como visitaram uma olaria, fazem um forno de tijolos e barro (amassado com os pés). Mais tarde, durante o Bazar Natalino da escola, as crianças fazem pães, e os vendem para os visitantes. Depois o forno é desfeito, para a classe correspondente do próximo ano construir o seu.

Uma característica essencial do 2º setênio é que as crianças desenvolvem suas sensações e sentimentos. Assim, todas as matérias deveriam apelar para o senso estético do belo, usando-se contrastes que incentivem os sentimentos. Na Pedagogia Waldorf, um cuidado extremo é tomado para que o ensino fundamental não seja intelectual, abstrato. Assim, no 2º setênio não são dadas no ensino de ciências explicações conceituais. São mostrados fenômenos físicos ou químicos, e as crianças aprendem a observá-los atentamente e a descrevê-los em textos em seus cadernos, acompanhando-os com muitos desenhos coloridos dos aparelhos e dos resultados. Somente no 3º setênio é que os fenômenos são explicados conceitualmente, apelando para o intelecto.

Como contra-exemplo de ensino abstrato, dirigido apenas para o intelecto, seria interessante o leitor recordar-se como aprendeu o que é uma ilha. Certamente, da maneira seguinte, infeliz padrão no Brasil, dada ao redor dos 8 anos de idade: "Uma ilha é um pedaço de terra cercado por água de todos os lados." Pois bem, essa é uma definição, e toda definição mata a realidade. De fato, a ilha assim definida é totalmente morta: não tem praias e pedras no mar, vegetação, animais, vento, cheiro do mar e ruído das ondas, etc. A criança não consegue imaginar quase nada com essa definição que, por sinal, está errada: não há água nos lados de cima e de baixo; além disso, se a ilha não tiver as bordas poligonais, haverá apenas dois lados, o de fora e o de dentro. Como poder-se-ia criar na criança o conceito de ilha provocando imaginações e vivências? Contando-se, por exemplo, a história de uma pessoa que estava em um veleiro, mas veio um vento forte e o barco virou. Não conseguindo desvirá-lo, ela nadou até chegar numa praia. Descansou, e pôs-se a voltar para casa, mas para todos os lados encontrava praias ou pedras no mar. Essa historia poderia levar muito tempo, com o professor acrescentando toda sorte de detalhes possíveis de ser encontrados numa ilha, e o drama da pessoa não conseguir sair dela e voltar para casa. Em seguida, o professor poderia pedir aos alunos que desenhassem em seus cadernos o que imaginaram para a ilha. Na aula seguinte, os alunos poderiam entrar na sala e ver no quadro-negro um bonito desenho colorido ilustrando a história, e tentariam contá-la. Em seguida, poderiam usar uma bacia metálica, fazendo uma ilha de barro, colocando nelas galhinhos e musgo representando árvores e vegetação, talvez um homenzinho de cera e, depois de o barro ter secado, colocar um pouco de água em volta da 'ilha'. Alguém duvida que as crianças terão aprendido o conceito correto de ilha dessa maneira? Nada de definições! Aliás, note-se que nenhuma professorinha define para as crianças o que é uma árvore, algo como "Um pedaço de pau fincado verticalmente na terra, com ramificações, folhas, flores, bla, bla." No entanto, as crianças aprendem o conceito de árvore simplesmente observando e vivenciando várias delas, trepando nelas, vendo suas folhas, flores e frutos.

No 3º setênio, a época do ensino médio, o pensamento abstrato está se desenvolvendo, e o jovem quer compreender o mundo (ver o exemplo da teoria da evolução do item 5.27). Agora é hora de ensinar intelectualmente, por exemplo provando teoremas na matemática, o que não faz sentido no ensino fundamental, onde aprendizado da técnica matemática é mais importante do que o do formalismo. No entanto, o ensino deve ser equilibrado com muitas matérias artísticas e artesanais, pois o ser humano não é apenas intelecto. Nesse período a ciência deve ser dada como teoria, sem se descuidar das vivências de laboratório.

Resumindo, no 1º setênio a base do desenvolvimento é o querer e as ações, no 2º é o sentir, e no 3º é o pensar abstrato, abrangendo-se assim as três atividades interiores do ser humano. É importante salientar que os 3 setênios são apenas grandes divisões; na Pedagogia Waldorf, cada um deles é ainda dividido em 3 períodos, com suas características próprias.

Infelizmente não posso entrar em mais detalhes, pois já me alonguei em demasia. Talvez ainda dê dois exemplos da adequação do ensino à maturidade dos alunos. Rudolf Steiner constatou que, ao redor dos 11 anos de idade, as crianças tem um pico de equilíbrio físico, adorando andar equilibrando-se em cima de muros, berias de calçadas e paus. Pois é nessa idade que são introduzidas equações lineares na álgebra, sob a forma de equilíbrio de pesos em uma balança, por exemplo "Qual o peso que deve ser colocado neste prato mais alto para equilibrar a balança, onde há nos dois pratos outros pesos conhecidos diferentes?". Steiner recomendou o estudo da lenda medieval de Parsifal e a busca do Graal no 11º ano, aos 17 anos. A história de Parsifal é um modelo fantástico para os jovens nessa idade. Nela, ele passa da ingenuidade ao conhecimento, amadurecendo a duras penas, o que lhe dá a possibilidade de salvar o Rei Anfortas de seus sofrimentos, formulando a pergunta necessária para isso (que revela um interesse pelo sofrimento do outro, e o impulso de ajudá-lo). Por meio das imagens da lenda eles percebem que estão passando por um processo análogo, e logo vão ter que enfrentar o mundo, terão que começar a decidir o que vão estudar ou fazer de sua vida, etc. Para maiores detalhes sobre a lenda de Parsifal e seu aspecto pedagógico, veja-se um relato sobre um desses cursos e o livro de minha esposa (Setzer 2008).

Essa divisão em setênios pode parecer estranha, mas é muito antiga, tendo sido introduzida na Grécia. Rudolf Steiner, o idealizador e introdutor da Pedagogia Waldorf, foi quem resgatou esse conhecimento, ampliando-o enormemente com conceitos detalhados, formando uma parte fundamental daquela pedagogia. Note-se que havia um conhecimento intuitivo, infelizmente perdido, de que eles significavam algo fundamental no desenvolvimento da criança e do jovem. De fato, as crianças entravam antigamente na escola apenas ao redor do 7 anos, e não havia a pré-escola, onde se pretende acelerar indevidamente o desenvolvimento intelecual da criança. Naquela época havia realmente um jardim de infância, uma expressão maravilhosa, cuja eliminação mostra o quão pobre de conhecimentos são os educadores de hoje. Quando eu era criança, já não havia restrição de idade para entrar no primeiro ano do que era chamado de 'ensino primário', durando 4 anos. No entanto, havia-a para a passagem para o que se chamava de 'ginásio', que tinha também 4 anos, correspondendo ao período da 5ª à 8ª séries (6ª à 9ª na nova seriação – que infelizmente adianta a escolarização de um ano – não é absolutamente isso que vai melhorar o aprendizado, pelo contrário!). De fato, na minha época não era permitido entrar no 'ginásio' se a criança não fosse completar 11 anos até 30 de junho do ano de entrada. Isto é, havia uma tradição de que a maturidade dada pela idade era essencial para o aprendizado diferenciado do 'ginásio' em relação ao 'primário'. Neste, havia uma professora de classe, que dava todas as aulas principais. Infelizmente, ela mudava a cada ano. Já no 'ginásio', havia professores de matéria – em geral, 11 matérias por ano! O obstáculo dos 11 anos para entrar no 'ginásio' significava que os alunos, fora os infelizmente reprovados, tinham mais ou menos a mesma maturidade cronológica, seja para entrar no colegial (15 anos) como no ensino universitário, no qual se entrava com pelo menos 18 anos a completar até 30 de junho.

Na Pedagogia Waldorf, no ensino fundamental há um 'professor de classe' que idealmente acompanha uma classe desde a 1ª até a 8ª série, dando todas as matérias principais: português, matemática, história, geografia e ciências, mais algumas específicas daqela pedagogia, como por exemplo desenho de formas nos primeiros anos. Isto é, o professor deve ser um generalista. Outros professores dão matérias especializadas, como línguas estrangeiras (em geral duas), educação física, artes e artesanatos. Já no ensino médio, que leva 4 anos, da 9ª à 12ª série (como é o caso do ensino em geral na Europa, nos EUA e no Canadá), há professores especializados em cada matéria, isto é, o de matemática é um matemático, o de física um físico, etc. Nesse período há um professor-tutor da classe, que a acompanha nos 4 anos, dando aulas de 'tutoria', onde são tratados os problemas da classe, programadas viagens, festas, etc.

A figura do 'professor de classe' é fundamental. Até o fim do 1º setênio, os pais eram a maior autoridade. Quando a criança entra no ensino fundamental, os pais deixam de exercer esse papel, que deve passar em grande parte para o professor. Na Pedagogia Waldorf, a autoridade do professor é fundamental, mas não deve ser confundida com autoritarismo: a expressão-chave é 'autoridade com amor'. No 2º setênio, a criança e o adolescente ainda precisam poder apoiar-se em alguém em quem confiam pela sua personalidade e experiência de vida, para poder guiá-los. Já no 3º setênio, a autoridade deve vir do conhecimento especializado – o aluno admira um professor que é conhecedor profundo de sua matéria e sabe responder qualquer pergunta intelectual sobre ela.

Uma das características fundamentais da Pedagogia Waldorf é o fato de não haver nem notas, nem repetição de ano. Ela foi a origem da recomendação da UNESCO para que o ensino fosse continuado. Infelizmente, aqui no Brasil esse tipo de ensino é muito mal falado, pois foi extremamente mal implementado, a partir daquela recomendação: não houve preparo dos pais, dos professores e das escolas. Na Pedagogia Waldorf, o ensino continuado funciona maravilhosamente, mas é continuado mesmo, até o fim do colegial, sem os denominados 'ciclos' onde pode haver repetição de ano. De fato, por que reprovar, por exemplo, uma criança de 8 ou 9 anos? Quem sabe ela não conseguiu responder perguntas de provas da maneira adequada ou não fez os trabalhos devidos. Nesse caso, ela não teve a responsabilidade de estudar a matéria, ou de fazer certos trabalhos. Mas como se pode exigir que uma criança tenha essa responsabilidade, se isso é uma característica de adulto? O aluno deveria estudar e fazer suas tarefas não por obrigação, mas por entusiasmo.

Antes do ensino continuado, os professores das escolas comuns obrigavam os alunos a estudar com a ameaça de notas baixas e reprovação. Não foram preparados para interessar os alunos nas matérias, e foi-lhes retirado o maior instrumento de pressão para o aprendizado e também para a disciplina. No entanto, a Pedagogia Waldorf está mostrando desde 1919 que notas e reprovações podem ser dispensados; assim, os alunos passam a não ter tensões em sua escolaridade. (Alguém pode me dizer para que criar crianças e adolescentes sob tensão?) O resultado tem sido sempre extraordinário. Veja-se, por exemplo, o artigo "Sete mitos da inserção social do ex-aluno waldorf" contendo uma estatística feita por Wanda Ribeiro e Juan Pablo com ex-alunos da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo, a mais antiga (começou em 1956) e a maior (há duas classes paralelas para todas as séries) do Brasil. Visite-se, também a exposição de trabalhos de todo o ano no Bazar Natalino de qualquer escola Waldorf para se ver o que significa essa pedagogia. Essas exposições são muito interessantes pois se vê, classe a classe, como os alunos vão amadurecendo e desenvolvendo suas capacidades, desde o jardim de infância até o fim do ensino médio.

Um aspecto que permeia toda a Pedagogia Waldorf, desde o jardim de infância até o fim do ensino médio é um ritmo de contração e expansão dos alunos em uma classe. Quando eles ouvem uma história ou uma teoria, há a recepção das informações, num gesto de contração. Em seguida, eles fazem alguma atividade relacionada com o que ouviram, como desenhar e escrever no caderno, o que significa colocar para fora algo relacionado com o que aprenderam, em um gesto de expansão. No ensino tradicional, normalmente o aluno fica sentado horas na carteira, apenas absorvendo o que é ensinado. É muito interessante comparar a saída dos alunos de escolas tradicionais e de escolas Waldorf. Nas primeiras, é comum existir como que uma explosão de hiperatividade, pois eles ficaram acumulando, contraídos, todo o tempo que estiveram na classe. Nas escolas Waldorf, os alunos em geral saem tranquilos, sem explodir.

Resumindo, a base para a educação deveria ser o reconhecimento de que existem fases de desenvolvimento da criança e do adolescente, e essas fases deveriam determinar todas as maneiras de como o ensino é feito. Além disso, é necessário compreender profundamente o que significa a criança e o adolescente, suas características e necessidades.

A Pedagogia Waldorf, que segue essa base e tem uma tal compreensão, pode parecer revolucionária. De fato, comparada com o ensino tradicional, e os horrores pedagógicos que são praticados hoje em dia, ela realmente o é. Só que ela existe desde 1919, quando Rudolf Steiner a introduziu na primeira Escola Waldorf em Stuttgart, na Alemanha – uma escola para filhos de proletários, os funcionários da fábrica de cigarros Waldorf-Astoria daquela cidade, daí seu nome. É o único sistema pedagógico de meu conhecimento que tem a sua extensão, profundidade, base conceitual e prática, e os seus resultados.

Com isso, expliquei o que eu quis dizer com 'adequadamente' na caracterização do que é educação dada no início deste item. Nessa caracterização ainda enfatizei vários tipos de desenvolvimento, sem dar especial importância a nenhum deles. Fiz isso pois considero que só assim forma-se um adulto equilibrado e harmonioso, podendo contribuir decisivamente para a melhoria da natureza e da humanidade, e tendo interesse nisso. De fato, não adianta ter-se, por exemplo, um gênio na ciência, se hoje em dia ele não tiver consciência de seu papel e orientar sua pesquisa para o que seja realmente positivo. Só com conhecimento, mas sem sensibilidade social e compaixão pela humanidade, um cientista pode dedicar-se a desenvolver novos tipos de bombas. Imagine-se como o mundo mudaria se cientistas e técnicos recusassem-se a desenvolvê-las e fabricá-las! Na verdade, parece-me que o desenvolvimento de sensibilidade social, de compaixão e de responsabilidade social deveria ser até uma meta prioritária na educação, no lar e na escola. Para isso, uma parte essencial da educação deveria ser voltada para o desenvolvimento de uma mentalidade de cooperação, evitando-se toda a competição.

Houve um professor de educação física da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo que fazia as classes jogarem diversos jogos com bola. Mas depois de alguns pontos, ele misturava os times e começava tudo de novo. Assim, ele evitava que se criasse uma atmosfera de competição de um time contra o outro. Eu mesmo desenvolvi um tênis cooperativo, que jogo com meu amigo Horst: só batemos bola, e nunca contamos pontos. Isso significa tentar rebater a bola independentemente se ela cai na quadra ou fora dela. Com isso, nosso exercício físico é muito mais intenso do que se jogássemos partidas, pois há muito menos interrupções. Não usamos pegadores de bolas, pois assim pelo menos fazemos uma pausa para pegá-las, o que é ótimo em nossa idade. Uma das características de nosso jogo é que cada um só elogia o outro, sempre que este dá uma tacada muito boa. Em geral, tentamos jogar uma boa bola para o outro, apesar de à vezes combinarmos que nas próximas jogadas vamos colocar a bola onde o outro não está, para treinar esse tipo de jogada. Assim, nosso jogo é muito agradável, ao ponto de Horst queixar-se de outros jogadores que só querem contar pontos e ganhar partidas.

Não há nenhuma, absolutamente nenhuma necessidade de se educar crianças e jovens para serem competitivos. Quando eles forem enfrentar a vida, infelizmente terão que competir, e não terão dificuldade em aprendê-lo, mas saberão apreciar o quanto é importante cooperar – o que está faltando enormemente na sociedade. De certo modo, a competição apela para o que há de animal dentro de nós; por outro lado, a cooperação apela para o que nós temos de essencialmente humano, e que os animais não tem. De fato, no mundo animal a vida é uma constante luta pela sobrevivência do indivíduo e da espécie; qualquer cooperação é instintiva da espécie, e não fruto de compaixão e de uma decisão consciente. Isso pode e deve ser educado.

Na caracterização de educação do início deste item, mencionei também habilidades artísticas e artesanais. É um fato que toda criança pequena é um artista, devido à capacidade de fantasiar e imaginar, como já foi citado nos itens 5.12 e 5.15. O adulto criativo é aquele que conservou um pouco de sua infantilidade, no aspecto da fantasia e da imaginação. Portanto, uma das metas da educação deveria ser de preservá-las, e não matá-las, como é o resultado atual da educação no lar e na escola. Um intenso ensino artístico e artesanal, durante toda a escolaridade, e o incentivo a essas atividades no lar (por exemplo, o estudo de um instrumento musical, a colocação de giz de cera, tintas, papel e telas à disposição das crianças e jovens animando-os a desenhar e pintar, etc.) são essenciais para a preservação da imaginação e o desenvolvimento de habilidades artísticas. A Pedagogia Waldorf mostrou que todas as crianças e adolescentes desenvolvem essas habilidades. Por exemplo, nas escolas Waldorf as crianças cantam intensamente desde o jardim de infância, e começam a tocar flauta doce (o instrumento musical mais fácil de aprender, em qualquer idade) já na 1ª série. O coral do ensino médio da Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo, composto por todos os alunos – e todos cantam afinado –, já cantou no Carnegie Hall, em New York, tendo inclusive recebido um segundo convite, que não se concretizou. Visitando-se a exposição dos trabalhos do ano em um bazar natalino de uma dessas escolas, tem-se a impressão de que todos os alunos são artistas. Não, eles simplesmente tiveram um incentivo para não perderem sua fantasia e tiveram suas habilidades artísticas e artesanais intensamente desenvolvidas, durante toda a escolaridade. Há inúmeros relatos dos resultados dessa educação artística; vou contar apenas dois, que ouvi.

Uma ex-aluna Waldorf foi fazer o curso de odontologia. O professor começou a descrever algo sobre os dentes, e enquanto ele o fazia, ela começou a desenhar um dente com as características que ele descrevia abstratamente. Depois da aula, seus colegas a rodearam, e ficaram espantadíssimos com o perfeito desenho que ela tinha feito, dizendo que agora compreendiam o que o professor tinha querido dizer. Um cirurgião, ex-aluno Waldorf, relatou como foi importante para ele ter tido na escola todo o trabalho manual com fios pois não teve problema em aprender a fazer suturas. Esse tipo de trabalho manual, que cobre todas as séries do ensino fundamental, vai desde o tricô na 1ª (usado em parte como preparo para o raciocínio matemático, pois a precisão é essencial, não se podendo perder nenhum ponto, como nos cálculos), passando pela confecção de uma meia sem costuras na 6ª série (ao redor de 12 anos), usando 5 agulhas, até fazer uma malha completa na 8ª série (essa sequência continua depois com teares). Aliás, como em todo o resto do ensino de artesanato, isso é feito tanto por garotos quanto por garotas.

Do ponto de vista intelectual, um ensino ideal é aquele que forma alunos com pensamentos flexíveis, e não rígidos e preconceituosos como normalmente acontece no ensino tradicional. Por exemplo, nada, absolutamente nada é simples na natureza. Tenho um aforisma que diz o seguinte: "Desconfie de toda explicação simplista de algo da natureza." No entanto, o ensino tradicional apresenta explicações pseudo-científicas erradamente simples. Por exemplo, como se aprende a causa das marés? Que elas são devidas à atração gravitacional da Lua e do Sol sobre os mares. De fato, essas forças atuam sobre os mares, mas as marés são devidas a uma confluência de forças e situações extremamente complexas, envolvendo ainda a forma das bacias oceânicas, as correntes marítimas, o movimento de rotação da Terra, etc. As marés aparecem devido a um movimento de ressonância, quando todas essas condições fazem os mares entrarem em movimentos de regime estável. E o mais espetacular é que os pontos de marés altas (e de baixas) rodam como raios em torno de um ponto no meio dos oceanos, onde não há maré (ponto anfidrômico). Há vários desses centros sem maré, um no Atlântico Sul, outro no Norte, etc. Os mapas da Terra, cotidal maps de Schwiderski, mostrando a rotação das marés altas duas vezes ao dia, cobrindo todos os oceanos, são lindíssimos, e mostram um verdadeiro pulsar dos mares – algo muito mais vivo e complexo do que a idéia errada de que as marés são devidas simplesmente à Lua e ao Sol (se fosse só assim, haveria apenas uma maré alta por dia).

Um outro exemplo: o coração é apresentado como a bomba que impulsiona o sangue pelo corpo. Essa é uma verdadeira 'bomba' de explicação, absolutamente ridícula, pois essa bomba deveria ter uma potência fantástica para fazer o sangue circular por milhares de quilômetros de vasos sanguíneos (segundo a wikipedia, verbete "blood vessels", citando publicação da American Heart Association, o total é de 100.000 km!), a maior parte deles capilares, e ainda levando em conta a alta viscosidade do sangue. Além disso, que bomba é essa que dói se a pessoa tem uma frustração amorosa muito grande?

Além de enrijecer o pensamento, a maneira simplista como a ciência é apresentada na escola acaba por produzir crentes nela, achando que ela vai resolver todos os problemas da humanidade e trazer a felicidade geral, quando na verdade a natureza está sendo destruída justamente pelas consequências da tecnologia, essa dileta filha da ciência.

A propósito de ensino que enrijece, petrifica o pensar, a mãe de uma ex-aluna Waldorf contou-me que sua filha foi fazer o curso de psicologia de uma universidade. Uma professora passou aos alunos um trabalho sobre algum assunto, e os alunos deveriam pesquisar o que Freud havia dito sobre ele. Essa aluna foi à biblioteca, e fez um trabalho não só sobre Freud, mas citando uma porção de outros autores que haviam publicado sobre o caso em questão. Tipicamente, a professora elogiou o trabalho, mas disse à aluna que, na próxima vez, deveria ater-se somente ao que foi pedido...

O ensino artístico, não só em matérias artísticas, mas em todas, obviamente produz um pensar mais flexível, pois a arte não é feita sobre um espaço bem definido, como é o caso da matemática e como a física e a química são comumente apresentadas, isto é, por meio de modelos matemáticos. Em particular, a geometria permite que se introduzam elementos altamente estéticos na matemática. Lembro-me muito bem como fiquei extasiado ao ver uma senóide pela primeira vez no 1º ano do antigo colegial. O ensino de trigonometria deveria começar com os alunos desenhando senóides (por exemplo, a partir da projeção, na ordenada, de uma lâmpada fixada em uma roda vertical com rotação constante, com a abscissa indicando o decorrer do tempo), para sentirem a beleza dessa curva que, não por acaso, é denominada de 'curva harmônica'.

Finalmente, algo sobre a expressão "colocar livremente essas habilidades em prática, de modo que possam, por si próprios, encontrar seu caminho..." na caracterização do que deveria idealmente ser a educação. Inspirada em uma frase de Rudolf Steiner descrevendo o objetivo da Pedagogia Waldorf, ela envolve dois aspectos: a liberdade e a individualidade. Certamente, ninguém que parta da hipótese de que o ser humano pode ser livre vai negar a importância disso. No entanto, parece-me que o ensino tradicional vai justamente contra a liberdade, por ser excessivamente abstrato, intelectual. Howard Gardner, em seu livro sobre inteligências múltiplas (1995), introduz a noção de que existem várias formas de inteligência: a lingüística, a lógico-matemática, a cinestésica (capacidade de detectar e dominar os movimentos), a espacial (consciência do espaço), a musical, a inter-relacional (capacidade social) e a intra-relacional (consciência das capacidades e limitações próprias). Ele chama a atenção para o fato de, na escolaridade, praticamente somente as duas primeiras serem cultivadas. No Brasil, certamente mal e mal – já encontrei vários alunos de escolas públicas que estavam na antiga 8ª série ou mais adiantados, mas nem sabiam a tabuada. No entanto, ele diz que essas são as habilidades menos importantes para o sucesso profissional, o que é corroborado por Daniel Goleman (1995); a sua 'inteligência emocional' é a 'inter-relacional' de Gardner. Não adianta ser um excelente técnico se o profissional não souber relacionar-se com seus colegas de trabalho ou com o público. Como uma pessoa pode ser livre se só foi educada para ter apenas habilidades linguísticas e lógico-matemáticas?

É importante salientar que formar um adulto livre não significa de modo algum dar liberdade exagerada para crianças e adolescentes, no que eu denomino 'ensino libertário', isto é, o aluno faz o que quer – a propósito, essa é a situação quando uma criança ou adolescente usam a Internet sozinhos. Obviamente, deve-se dar alguma liberdade à criança desde a mais tenra idade, como por exemplo colocar vários brinquedos à sua disposição e deixá-la escolher com qual quer brincar. Mas liberdade total é extremamente prejudicial às crianças, pois estas sabem inconscientemente que precisam ser guiadas – por exemplo, a hora das refeições não é a hora de brincar ou fazer qualquer outra coisa. Muitas crianças ficam inclusive azucrinando os pais, só para levarem uma reprimenda e sentirem que estão sendo cuidadas e protegidas. Conjeturo que excesso de liberdades e ausência de limites acaba por produzir adultos inseguros, sem capacidade de estabelecer seus próprios objetivos e sem força interior e coragem para concretizá-los.

Quanto à individualidade, a massificação do ensino vai totalmente contra ele. Por exemplo, a adoção de livros-texto bitola a nomenclatura, a sequência, exemplos e exercícios. Por isso, na Pedagogia Waldorf cada aluno faz seu próprio caderno de cada matéria, com todo o conteúdo dado pelo professor levando em conta as características, interesses e ambiente externo da classe. Um outro exemplo são as notas, que transformam um aluno em um objeto massificado e mensurável – o que ele próprio sente que não é, pois uma nota não revela nada de sua individualidade no que tange seu esforço e interesse pela matéria, o que absorveu de síntese da mesma, o seu estado de espírito quando fazia as provas, etc. Pergunto aos leitores: quanto lembram daquilo que tiveram que estudar para as provas durante toda sua escolaridade? Provavelmente, nada ou quase nada! Então, para que tiveram que fazê-las? Meu filho formou-se em administração de empresas, e tornou-se o vice-presidente de uma das maiores empresas de software do mundo. Ele diz que não aprendeu praticamente nada com as aulas na faculdade, uma das melhores de São Paulo – aprendeu com os projetos que teve que elaborar durante seu curso. Já está mais do que na hora de o ensino, em todos os níveis, mudar para o que realmente é importante, e deixar de tratar os alunos como meros repositórios de dados e informações – e o pior é que no Brasil, em geral nem isso é feito.

Idealmente, um professor deveria conhecer cada um de seus alunos, e dar aulas muitas vezes tendo alunos específicos em mente. Infelizmente, isso é impossível com o nosso sistema de ensino, onde o professor tem que dar um número exorbitante de aulas, muitas vezes em várias escolas, para poder sobreviver dignamente, fora a quantidade exagerada de alunos por classe. Na Pedagogia Waldorf, o professor tem obrigatoriamente dedicação exclusiva, e o número de aulas deve permitir-lhe participar de reuniões, preparar aulas, atualizar-se, etc. Além disso, como o professor de classe idealmente pega uma classe na 1ª série e dá todas as matérias principais até a 8ª, ele acaba conhecendo profundamente cada aluno, podendo assim tratar cada um individualmente, o que incentiva a individualização.

A educação ainda tem características universais adicionais. Por exemplo, tanto no lar quanto na escola ela é altamente contextual. Por exemplo, se um pai compra um livro para um filho (uma relativa raridade no Brasil), ele certamente examina o livro para ver se é educacionalmente adequado à maturidade do filho, se o conteúdo corresponde ao que ele pensa ser um livro adequado, etc. A propósito, como avô, há muitos anos tenho dificuldade de comprar aqui livros infantis bonitos e artísticos – o que não acontece na Europa e nos EUA. Em geral, as figuras são grotescas, monstruosas ou caricatas. É difícil entender o que os autores e os editores tem em sua mente, e o que os pais imaginam ser adequado para crianças, pois se quase todos os livros infantis são assim, certamente muitas pessoas devem achá-los uma gracinha e os compram.

Na escola, a contextualização está sempre presente: um professor dá uma aula para uma classe levando em conta o que ele deu para ela nas aulas anteriores. Obviamente, um mesmo assunto deveria ser dado de maneiras diferentes conforme a série, pois a maturidade dos alunos vai mudando. Na Pedagogia Waldorf, a contextualização é imensa: em geral o ensino é integrado entre todos os professores de uma mesma classe, e cada professor tenta dirigir-se a cada aluno da classe individualmente. Além disso, idealmente cada professor de classe deveria visitar as famílias uma vez por ano, para conhecer os hábitos e a visão de mundo do ambiente de cada aluno; infelizmente isso é muito difícil, pois significaria quase uma visita por semana para o professor.

Um outro aspecto essencial da educação é que ela sempre foi radical, no sentido de se evitar, no lar e na escola, o que é educacionalmente prejudicial. Por exemplo, nenhum pai morando em uma cidade grande com tráfego razoável deixa seus filhos brincarem na rua – além do tráfego, ainda há o miserável perigo, neste país, de seqüestros, agressões, etc. Isso é radicalismo dos pais. Nenhuma cantina de escola vende cerveja ou pinga. Isso é radicalismo. Nenhuma escola dá ensino sexual na 1ª série do ensino fundamental. Isso é radicalismo. Nenhuma escola ensina álgebra antes de aritmética, ou trigonometria antes de álgebra. Isso é radicalismo.

PARTE 5